Seguindo a proposta de publicar sempre um texto novo por aqui, hoje escolhemos "O vitral", de Osman Lins. Esperamos que gostem e boa leitura!
Osman Lins (05/07/1924 - 08/07/1978) é natural de Pernambuco, autor de contos, romances, narrativas, livros de viagem e peças de teatro.
Seu primeiro romance, entitulado “O visitante” foi lançado em 1955. Talvez, sua obra mais conhecida seja a peça “Lisbela e o prisioneiro”, que foi adaptada ao cinema no ano de 2003.
Em 1970 tornou-se professor universitário, ensinando literatura brasileira. Obteve também o grau de doutor em Letras, com uma tese sobre o escritor Lima Barreto. Em 1973 Lins publicou o enigmático romance "Avalovara", considerado uma de suas principais obras e traduzido para diversas línguas.
O arquivo pessoal do escritor foi doado pela viúva do escritor, a também escritora Julieta de Godoy Ladeira (1927-1997), a duas instituições brasileiras: Fundação Casa de Rui Barbosa(Rio de Janeiro) e Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (São Paulo).
Na Cidade de Vitória de Santo Antão, foi construído o Centro Universitário Osman Lins em homenagem ao Escritor.
O vitral
(Osman Lins)
Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo.
Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos. - Ora... Temos tantos... - respondera o homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!
A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se.
- Está bem. Você não quer... (A voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.)
- Suas tolices, Matilde... Quando é isso?
Como se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:
- Em setembro - dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu...
- Ah! Uma comemoração - interrompera o esposo. Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós.
Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas purificara-se da ironia e as repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter. Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, com réstias de sol no mosaico, no leito, nas paredes, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo o mais se tornava inexpressivo.
- Se você não quiser, eu não faço questão do retrato - disse ela. Foi tolice.
- O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.
- Não. Vou assim mesmo.
Abriu a porta, saíram. Flutuavam raras nuvens brancas; as folhas das aglaias tinham um brilho fosco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.
Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.
- Manhã linda! - murmurou. Hoje eu queria ser menina.
- Você é.
A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente. Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesma de tudo o que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido? Estas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
- Aproveite - aconselhou ele. Isso passa.
- Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei. As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.
- Não é possível guardar a mínima alegria - disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.
Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à infância e ao domingo, que fluíam com força através delas. Atravessaram a rua, abriram um portão, desapareceram.
Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. “Que este momento me possua, me ilumine e desapareça - pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo.”
Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral.
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