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Noite dos Olhos

de Heloisa Seixas


Amanhecia quando ele chegou, e eu estava aqui, exatamente aqui, nesta cadeira de balanço onde me recosto agora, a cadeira de onde contarei — pela última vez — a história. Primeiro, ouvi um ruído na porta. Apenas um roçar, um murmúrio, mas que me pôs em alerta, sem que eu soubesse por quê. Com as costas eretas, fiquei à espera. Antes de me levantar, queria a confirmação de que ouvira de fato um som. Passara uma noite inquieta. Adormecera na sala, cansada demais para subir os degraus, um a um, rumo ao quarto onde Carlos me aguardava, em nossa cama fria. E tivera sonhos agitados, nos quais me vira voando e dançando e sangrando nas mãos. Sentia‑me exaurida, como se houvesse caminhado no sono. Apurei os ouvidos. Nada. Olhei em torno. Meus olhos, virgens ainda, inocentes do que viria, percorreram estas mesmas paredes que hoje me cercam, conspurcadas. Vi seus ângulos e junções, os cantos onde a penumbra se adensa, mesmo se a madrugada vai alta. Observei o arco que divide as duas salas. Revi mentalmente a porta do corredor, a escada em curva, com seu corrimão de madeira torneada e escura. E esperei. Logo, o ruído se repetiu, dessa vez mais forte. E decidi levantar‑me. Ainda olhei pela janela o dia que nascia, rasgando em tiras vermelhas o último céu, da última madrugada. Senti que minhas mãos estavam frias. Fechei o roupão sobre o corpo, mas por um motivo qualquer não calcei as pantufas. Foi descalça que trilhei o chão de tábuas corridas, cuja frialdade me subiu pelas plantas dos pés em pequenos choques, ínfimos raios. Quando caminhava, fui tomada por um sobressalto, talvez porque voltassem os baques na porta, talvez porque eles ressoassem em meu peito. Ou quem sabe era apenas meu coração, que batia descontrolado. Mas pode ser também que eu já pressentisse que ele estava lá, do outro lado da porta. Pela fresta entreaberta, a princípio enxerguei apenas as silhuetas das árvores, brotando das sombras com seu brilho pálido. Quando a madrugada espalha na vegetação suas luzes, a natureza se reveste de um manto delicado e translúcido, que nos faz ver fantasmas. Assim nascia aquela manhã. E foi em meio à penumbra assombrada que eu vi, pela primeira vez, o brilho dos olhos. Eles faiscaram a poucos metros de mim e já — naquele instante — minha reação foi uma ruptura: não me assustei. Ao contrário. O sobressalto que sentia desapareceu por encanto. Ao ver‑lhe os olhos, permaneci imóvel, junto à porta, aguardando, composta. Hoje, olhando para trás, penso se aquele momento de calmaria já não seria o prenúncio de tudo o que estava por acontecer, pois me senti pacificada demais, como os condenados sem esperança. No rosto dos que estão morrendo surge uma força incomum, em seu semblante resplandece uma grandeza ímpar. Se eu pudesse ver meu rosto então, acho que o veria assim. Senti minha expressão refazer‑se, meu corpo estancar o medo, meu coração recomeçar a bater com mansidão. O universo inteiro pareceu mudar de ritmo quando eu olhei, pela primeira vez, aqueles olhos. Olhos que brilharam no escuro, com uma fosforescência de matizes ora verdes ora amarelos. Não piscaram. Estavam fixos em mim. Há quanto tempo foi isso? Quantas horas, quantos dias? Não sei. O tempo é organizado, partido em pedaços exatos, ordenado pelo homem em sua busca vã por tentar vencer o desconhecido. E eu nada sei de exatidão ou sistemas. Conheço apenas o caos. Meu coração se transformou no epicentro de uma tormenta desde que ele entrou aqui. Dentro e fora de mim, todo o universo foi afetado. Os planetas singram sem sentido algum no espaço, o sangue envereda por veias e artérias na busca cega de caminhos. A única coisa que há, que sempre houve, a única constância — é o silêncio. Nele há sentido, verdade, ordem. O silêncio foi a marca, sempre. Nenhuma palavra, nenhum som, nada. Os primeiros segundos, dramáticos, definitivos, foram de quietude absoluta. E eu logo percebi que havia naquela mudez um propósito. Era como se já esperasse por ela. Sabia que nosso contato se daria, todo o tempo, sem o amparo de sons. Aceitei seu silêncio porque era parte do jogo. E, com um gesto de corpo, fiz sinal para que entrasse. Eu o introduzi. Havia, em algum ponto de mim, um alerta, me avisando da imensidão daquele gesto. Mas nada me deteve. Virei‑me e caminhei de volta até o centro da sala, sem medo de dar as costas ao desconhecido. E ele entrou. Carlos dormia no quarto, lá em cima. Carlos nada ouviu, nada ouve. Carlos dorme, ainda, seu sono profundo. E o desconhecido entrou. Seus passos não fizeram ruído ao tocar o chão, mas neles nada havia de furtivo. Havia, sim, altivez, domínio. A quietude daquele andar era, como o silêncio de palavras, premeditada e necessária. E no mesmo instante eu percebi que estava pronta para fazer tudo o que ele ordenasse. Como pude? E por quê? Por que deixei que acontecesse? Não sei. Sei apenas dos olhos, que ardiam. E de como me prenderam, por um longo tempo. Sei que me curvei, me espojei no chão, rendida, à espera de sua aproximação. E sei de um bloco imenso que cresceu em meu peito, enquanto aguardava, sem tirar os olhos dele. Um bloco feito de fogo e desejo, mas também da mais completa entrega, de devoção e amor, um amor incondicional, que tomou forma dentro de mim, instantaneamente. Sei de como, trêmula, vi que ele se chegava, as narinas dilatadas, me farejando, os olhos cada vez maiores, as pupilas tomando quase toda a íris, enchendo de negror a superfície esbraseada. Sob o roupão, eu sentia cada fibra de meu corpo nu, cada milímetro de pele que queimava, o ventre arqueado, os mamilos despontando. Chamava‑o. Clamava por ele — e ele sabia. Lá fora, clareava. Os pássaros cantavam, anunciando o dia, e embora a noite ainda deixasse seus restos pelos cantos da sala, eu já podia ver tudo, cada detalhe daquele corpo, a ponta dos dentes muito brancos faiscando, os fios lisos e negros que brilhavam, fazendo pressentir a maciez do veludo. Só quando ele estava muito próximo é que fechei os olhos. Passei eu própria a fareja‑lo, então. Imaginava‑lhe as formas, os gestos, e tremia de desejo ao pensar no segundo em que se daria o primeiríssimo contato entre nossos corpos. Já me via deslizando nele minhas mãos, em um toque sutil, recebendo‑lhe a presença em cada sensor das minhas palmas, para que dali se irradiasse em ondas de choque, sacudindo‑me a carne e os ossos. Eram as minhas narinas que agora se abriam, buscando. Mas, que estranho. Embora seu mínimo rumor me dissesse que ele estava muito próximo, meu sentido do olfato era o único que nada me contava. Demorei, até que compreendi. Eu, que esperava um odor selvagem, constatei, com espanto, que ele não tinha cheiro. Mas sabia‑o próximo, muito próximo. E estendi a mão para tocá‑lo. O veludo pressentido se materializou sob a mão e minha pele vibrou, incendiada. O bloco em meu peito cresceu, tomou‑me inteira, expandiu‑se como fogo sólido. E aquele amor sobrenatural, inexplicado, se fez tão material que era como se eu desaparecesse. Eu não era mais eu. Eu era aquele amor. E quando ele se deitou sobre mim, quando pisou em meu coração, tive a consciência exata de que estava perdida — de que me transformara em sua escrava. Terá sido ele, então? Terá partido dele a ordem para que eu subisse a escada? Como terá vindo parar em meu poder a faca, cuja lâmina me encheu de sangue as mãos, como no sonho? Não sei. Não sei como o amor se transmutou em ódio e como aquela presença me fez entender, de forma incontornável, que — depois dele — ninguém jamais voltaria a tocar‑me. Nem Carlos. Muito menos Carlos. Só sei que a madrugada de veludo, de olhos em brasa e coração transbordado, se tingiu de sangue, de repente. E meu olhar, que pouco antes se hipnotizara, agora enxergava apenas um ser adormecido, sobre a nossa cama fria. E todo o meu corpo, que antes fremia de amor, tornara‑se apenas o prolongamento de um braço, a extensão da mão onde vibrava a lâmina. E sei que no quarto onde a noite se escondera, onde a penumbra restara, no quarto amaldiçoado por tantos anos de horror e silêncio, era eu, agora, quem reinava, gritando de júbilo a cada golpe. A luz avermelhada do crepúsculo desce pela parede, lentamente. As sombras caminham, vencendo pouco a pouco a claridade que ainda resta. Mais uma noite cai. No papel de parede, com seus florões desbotados, há riscos cor de ferrugem, que escorrem em direção ao chão. E, nas tábuas do assoalho, manchas da mesma cor, de diversos formatos, cristalizadas sobre a madeira, já quase se confundem com a cera escura. Talvez sejam antigas. É difícil saber. Para nós, seres imateriais que aqui estamos, até seria possível fechar os olhos para essas nódoas e fingir que está tudo em ordem. É tão grande, afinal, o silêncio na casa adormecida. Mas um odor estranho paira no ar, insistente, e isso nos inquieta. É acre, rascante, levemente marinho. Talvez seja cheiro de sangue. Melhor não descobrir, melhor sair daqui. Nossos olhos se voltam para a escada, que vai dar na sala. Precisamos descer. A penumbra parece fechar‑se a cada degrau e talvez já não haja, lá embaixo, nem a luminosidade do crepúsculo. Mas devemos continuar. Não podemos desistir agora. Vamos. Os degraus não rangem, nada temos a temer. Somos espectros, apenas. E aqui estamos para ver sem ser vistos, seja o que for que nos aguarde. O corrimão tem manchas, também — e isso só faz aumentar nossa inquietação. Apesar da pouca luz, parecem mais úmidas, pegajosas. Nem ousamos nos aproximar para descobrir o que seriam, tampouco nos detemos a observar o chão. Nosso olhar agora se prende ao fim do corredor, à saleta com seu portal em arco, que, sabemos, vai dar na sala principal. É lá que está o fim da história. Como pressentíamos, no andar de baixo já é quase noite. Mas nossos olhos espectrais apuram a visão e perscrutam o corredor. Seguimos. Em um segundo, estamos junto à arcada que vai dar na sala. Há mais claridade, aqui. Por uma janela deixada aberta, a luz crepuscular ainda se insinua, vencendo a vegetação que cerca a casa. É avermelhada, como aquela que há pouco vimos derramar‑se na parede do quarto, porém ainda mais tênue, porque, com o passar dos minutos, a noite se fecha. Mas essa luz é suficiente para que possamos discernir, em meio à trama da cadeira de balanço, a mancha branca de um roupão. É uma mulher que está ali. Podemos ver seus cabelos negros, compridos, que se derramam sobre o espaldar enquanto a cadeira se move, para a frente e para trás. De repente, o movimento cessa. Sabemos que a mulher não nos verá, mas talvez pressinta nossa presença, pois move a cabeça devagar, espiando por cima do ombro. A luminosidade que vem da janela incide sobre seu rosto — e a expressão que vemos nele nos imobiliza. Um olhar febril, insano, a boca repuxada na imitação de um sorriso, todos os músculos da face contorcidos em um esgar que mistura prazer e dor, êxtase e loucura. Por um instante, ainda, esperamos. Mas agora estamos certos de que ela não nos vê. Seu olhar vara as paredes, parecendo perdido em algum mundo assombrado, muito longe daqui. Isso nos dá coragem para chegar mais perto. E é quando já estamos muito próximos que se dá a transformação. Os músculos do rosto se rearrumam, em um segundo o olhar entra em foco, o esgar da boca assume novo contorno e aos poucos dele vai brotando um sorriso límpido. Todas as feições se ajustam para fazer nascer essa expressão diversa, cujo significado levamos algum tempo para compreender. É a face do amor. Há entrega, veneração, comprometimento absoluto no olhar da mulher. Ela está apaixonada. E no momento exato em que chegamos a tal conclusão, sua cabeça recomeça a mover‑se, voltando à posição original, mostrando‑nos o que até então não havíamos percebido: que há alguém com ela nesta sala. Alguém em algum ponto na penumbra, à sua frente, para onde converge agora seu olhar. Isso explica a transformação. Com extremo cuidado, nos aproximamos ainda mais, acompanhando o olhar devoto, seguindo‑o até aquele que é, sem dúvida, o objeto desse amor insano. E então o vemos. Destacando‑se sobre o roupão branco, que agora sabemos maculado pelas mesmas manchas cor de ferrugem que tingem chão e paredes, ele parece adormecido. Está imóvel, aninhado sobre os joelhos da mulher. Mas quando nossa exclamação assombrada ecoa na sala, em uníssono, ele abre os olhos — e estes faíscam no escuro, reconhecendo nossa presença. Os gatos têm o dom de enxergar espectros.

Heloisa Seixas é uma escritora e tradutora brasileira. Nasceu em 26 de julho de 1852 na cidade do Rio de Janeiro. Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense, Heloisa trabalhou como jornalista no Jornal O Globo, na agência de notícias UPI e depois na assessoria de imprensa da ONU. Em 1995 estreou como escritora, ao lançar um livro de contos chamado Pente de Vênus: histórias do amor assombrado

A partir de então, escreveu vários romances, contos e novelas, além de peças de teatro. 


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