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Sacola, de Jarid Arraes

No livro Redemoinho em dia quente



Pai-nosso, ave-maria, credo e cruz. Obrigada, Padim, por mais um dia. Os pés ligeiros em serem calçados com as sapatilhas ortopédicas. A ca­misa bordada em ponto de cruz com flores pequenininhas, a saia cinza e o coque no topo da cabeça desciam as escadas todos muito arrumados no corpo. Francisca segurava o rosário. O estômago pedindo café.

De manhã, à tarde e duas vezes à noite, ocupava os lábios com as repetições rezadas, ajoelhadas e ofertadas na caixinha de madeira do altar. Caminhava até o padre, agradecia pela missa, ajudava o sacristão, parabenizava o rapazinho do violão, sorria para a mocinha que cantava não saber se a igreja havia subido ou se o céu é que decidira descer, cumprimentava outras senhoras, outras velhinhas usando seus coques grisalhos, e voltava para ouvir seus papagaios no quintal, enquanto despejava mais um pouco de ração para os gatos.

Não era difícil viver daquele jeito. Havia uma segurança na mesmice, uma certeza de que tudo ficaria exatamente como estava. A solidão valia a pena, espantava os parentes, mantinha a casa limpa e não desagradava a Deus. O que mais podia desejar? Tinha três refeições por dia, a companhia dos bichos e a onipresença de Nosso Senhor.

Sentia o coração um pouco mais alegre quando organizavam uma feirinha de artesanatos na praça e tinha para onde ir depois da missa. Sentava em vários bancos diferentes, como se experimentasse a variação da madeira lascada, e comia um saquinho de pipoca com manteiga, pra não agredir demais as artérias.

Naquele domingo, a feirinha estava especialmente bonita, bem cheia de gente diferente. Tinha saído um anúncio na rádio com a promessa de que um circo grande estaria montado por perto. Não gostava de circo, mas gostava das caras novas e das crianças em suas motinhas automáticas alugadas por cinco reais meia hora.

Estava sentada dando tapinhas nas pernas quando sentiu os dedos estralarem.

— Desculpa aí — disse um rapaz com cara de agoniado.

Tinha os chinelos trocados, mas parecia não perceber. Francisca fez um sinal de tudo bem com as mãos enrugadas e tentou não repa­rar muito, a juventude é assim mesmo, nunca se sabe o que é mania nova. Mas o rapaz não saiu de perto, ficou plantado no mesmo lugar, coçando a cabeça, os olhos assim arregalados procurando algo por toda a praça, até que derrubou uma sacola com um nó bem dado e saiu andando com pressa.

Francisca ficou olhando para o chão, tentando decidir o que fazer, se deveria correr atrás do rapaz ou se pegava o saco e esperava que ele mesmo desse conta do descuido e voltasse farejando suas coisas.

Por via das dúvidas, pegou a sacola.

É droga, decidiu, ligando os pontos ao tocar dezenas de comprimi­dos nas pontas dos dedos. Sentiu as pernas moles, frias, formigando. Quase não se deu conta de que já estava atravessando a rua e girando a chave na porta da sala.

O arrependimento veio junto com o baque do trinco se fechando.

E se ele tiver visto? E se vier aqui em casa pegar a sacola de volta? E se for um bandido perigoso? Já imaginava a manchete no Barra Pesada, embalando o pânico familiar da hora do almoço. Com cer­teza o bandido voltaria com uma gangue, todos danados porque uma velha de igreja tinha roubado um saco cheio de droga. Seria morta rapidinho. Pior, seria morta devagar, sofrendo e pedindo ajuda a Deus. Os gatos veriam seu cadáver apodrecendo e fugiriam, viveriam na rua, procurariam comida em outros quintais. E os papagaios? Os papagaios não sabia o que fariam.

Com o peito vibrando, enfiou a sacola no fundo de uma gaveta no armário da cozinha e subiu para o quarto com toda a intenção de rezar. Padim Ciço que ajude, que tenha misericórdia, porque aquilo não foi feito por mal. Rezou até que caiu no sono com um terço e um rosário pendurados nos pulsos.

Antes que o sino tocasse pela terceira vez, Francisca já subia os degraus da igreja. Sentou logo na primeira fila e se encolheu com os punhos fechados em prece. Começou a murmurar uma oração, mas teve o pensamento atrapalhado pela conversa de duas mulheres que se sentaram na fileira de trás. Algo sobre um curso de informática, sobre buscar novas oportunidades, sobre coisas ruins que vinham disfarçadas e que depois se transformavam em bênçãos, sobre os caminhos misteriosos do Senhor, afinal.

Francisca achou que aquilo fazia todo sentido. Se os bandidos viessem, devolveria a sacola, diria que guardou com todo o carinho para o rapaz aflito que viu na praça. Ia até se fazer de sonsa, dizer que ficou preocupada, que achou que eram comprimidos de remédio, e claro que aquela quantidade de medicamentos faria falta para alguém muito precisado. Não teriam motivos para matá-la, toda a droga estaria intacta, entregue, e ela não iria denunciar.

Achou curioso que aquela sacola pudesse ser tão valiosa para uma gangue inteira entrar na casa dela. Se a droga era tão importante, deveria ser muito cara, ou muito boa.

Valei-me, meu Padim, tô pensando besteira. Fez o sinal da cruz quando ouviu o início da missa, mas não levantou na deixa certa, não repetiu a reza nem prestou atenção no sermão do padre. Ficou matutando qual seria a vantagem de experimentar droga, de gastar tanto dinheiro com aqueles comprimidinhos. Porque se fosse ruim, mas ruim assim de verdade, tanta gente não usaria. E, além do mais, todo mundo sabe que ninguém vicia em nada assim de primeira vez, isso é história que se conta pra meter medo em moleque. Qual seria o problema? Tinha ganhado praticamente de presente. Se o rapaz viesse buscar, perguntaria quanto devia, pagaria, ficaria tudo bem. Ele não ia matar uma possível cliente, uma velha de igreja. Podia inventar que confundiu com o remédio pra gastrite.

Começou a se convencer de que aquilo tudo fazia parte de um plano maior. Imaginou o rapaz muito agradecido porque sua sacola tinha sido encontrada por uma senhorinha tão caridosa e até mesmo decidindo frequentar a igreja. Imaginou que conseguiria evangelizar os bandidos, porque o Senhor tem caminhos misteriosos, e na verdade aquela sacola de droga era uma oportunidade para que traficantes virassem seguidores de Jesus, devotos do Padre Cícero Romão Batista, que nunca falhava em atender às orações de Francisca. E, como nunca falhava, como a tudo conhecia, certamente sabia que seu coração precisava de algo diferente, algo que lhe trouxesse emoção, algo que fosse um pouco além da igreja, dos gatos, dos papagaios, do café coado com pano encardido.

Não esperou o fim da missa, fingiu um ataque de tosse para justificar a pressa em sair. Abriu a porta de casa tão rápido que fez um dos gatos pular todo espichado. Pediu desculpas ao xaninho e agarrou o puxador da gaveta com força. Só uma, pode não ser dro­ga, pode ser aspirina ou remédio pra dormir. Não fazia medo, tinha caído aos seus pés, era pra ser assim. E engoliu com meio copo de água do filtro.

Não demorou e a casa começou a ter uma aparência engraçada. A cadeira de balanço parecia dourada e logo em seguida tinha uma textura de borracha. Os gatos ficaram menores, mas seus olhos cres­ceram demais. Do teto, uma luz muito forte explodiu e tomou conta da sala de janta e de repente a música da mocinha da igreja parecia ter se tornado real. O céu tinha descido justo ali!

Tinha anjo pra todo lado, com vestidos brancos e compridos, descalços, segurando harpas, livros antigos e espadas reluzentes. As nuvens pareciam se aproximar, chegavam bem pertinho, e depois subiam de novo, igual brinquedo de parque de diversão.

Francisca ria e chorava, botava a mão na boca com a sensação de que tinha asas de anjo crescendo em suas costas. Ficou nisso, cha­mando os gatos pra perto, curiosa pelo encolhimento do corpo e o crescimento dos olhos, até que apagou.

Acordou com miados altos e pulou da cama assustada. Tinha perdido o toque do sino, estava atrasada para a missa, precisava escovar os dentes, o cabelo estava cheio de nó e não encontrava os sapatos. Levou vinte minutos para perceber que já passava da hora do almoço. Ai, Minha Nossa Senhora, o que aconteceu? Olhou para a estátua da Santa que ficava ao lado da penteadeira. E como se a Virgem respondesse, lembrou as cenas celestiais e a sensação inexplicável que tinha experimentado com aquele comprimido tirado da sacola. Até duvidou que fosse droga, porque nada inventado pelo ser humano poderia mostrar imagens tão bonitas, vindas diretamente do Paraíso. Lembrava bem, tinha até anjo. E se aquele era o Céu, com certeza era onde vivia Jesus, Maria, José e Padim.

Imagine que oportunidade única a de conhecer Padim Padre Cícero! Tinha muita sorte, porque não precisava esperar pela morte. Tinha sido abençoada por sua vida reta e dedicada à Igreja, sem sombra de dúvidas. Era uma recompensa.

No meio da alegria, se lembrou dos bichos e correu para alimentá­-los. Talvez devesse tomar um banho e pentear os cabelos também, porque Padim merecia que se apresentasse bem aprumada. Mas estava tão ansiosa. Não queria perder tempo, não podia deixar que o Santo esperasse. Nem colocou comida pra ninguém, só pegou outro com­primido e disse amém, que seja feita a Vossa vontade.

Ficou ainda mais maravilhada pelo que viu. Os papagaios voaram com panos azuis nos bicos, enquanto anjinhos desciam anunciando a chegada de alguém importante. Francisca ouviu sons de trombetas e teve certeza de que conheceria Padre Cícero naquele instante, mas o Santo demorou e vieram outras distrações. Pássaros de prata e flores brotando do chão, que a essa altura já não era de azulejo estampado, mas de cristal. As paredes se tornaram cremosas, dava pra sentir na palma da mão, e tudo estava tão bonito.

— Quero conhecer meu Padim — pediu, tentando ganhar os favores dos anjos.

E então veio uma luz que parou na escada e tomou a forma de um homem idoso com batina preta. Não dava pra acreditar que era ele, o próprio. O grito de “Padim” saiu rasgado, desesperado, mas foi murchando junto com as flores que perdiam a cor, e logo nada mais estava lá, além do escuro.

Os olhos abriram com dificuldade, ardendo, quase grudados por muitas camadas de remela. Francisca estava com uma das bochechas estatelada no chão. Ração por toda parte. Centenas de grãozinhos eram comidos pelos gatos, enquanto os papagaios assistiam. O lixo da pia também estava tombado. Minha Nossa Senhora. Era estranho ver a casa daquele jeito, ainda mais depois de vir do Paraíso, depois de quase ter conhecido o Santo do seu coração, da sua vida. Ela que não ia limpar nada, nem fazer outra coisa que não fosse correr atrás do céu, do momento em que beijaria os pés do Padre Cícero, aquele homem bom, santo, milagreiro, que escutava as aflições das menores criaturas como Francisca.

Reuniu toda a força que conseguia e levantou. As pernas vacila­ram, teve que segurar no armário de louças. Foi devagarzinho até a gaveta onde os comprimidos sagrados lhe esperavam. Dessa vez ia dar certo. Só pra garantir, engoliu três. Os gatos miaram, foram chegando e se esfregaram nas panturrilhas de Franscisca. Já ia se abaixando para acarinhar, quando viu a luz se espalhar pelo quintal. É ele!

Foi aos tropeços, quase sem ar, e empurrou um anjo que estava de pé logo ali na saída da cozinha. O quintal parecia o Jardim do Éden, as plantas estavam tão verdes e crescidas que iam se enrolando até o céu, até serem perdidas de vista.

A luz ia subindo pela escada do terraço, como se indicasse o caminho que Francisca tinha que seguir. E que seguiu, chorando, agradecendo a Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mãezinha Santa Vir­gem que tinham lhe oferecido tamanha graça.

Subiu os degraus quase pulando e viu o padre sentado em um trono de ouro, com anjinhos lhe servindo, voando, derramando jarras de uma água que era, ao mesmo tempo, cristalina e cor-de-rosa. Não podia acreditar que estava vendo seu Padim, com sua batina preta, currulepes nos pés e chapéu meio torto.

— Meu Padim — foi o que disse antes de se atirar da varanda, rumo ao abraço do Santo.



JARID ARRAES nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nome, As lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. Curadora do selo literário Ferina, vive atualmente em São Paulo, onde criou o Clube de Escrita para Mulheres. Tem mais de setenta títulos publicados em literatura de cordel. (Fonte: Cia. das Letras)

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