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Pio

Stefano Volp


Leo odiava a tal rotina administrativa, ainda que suas habilidades para lidar com a contabilidade fossem muito apreciadas. Os amigos diziam que ele não podia reclamar. Ganhava bem, salário todo mês, plano de saúde, vale-alimentação, seguro de vida e tudo. Às vezes, era obrigado a ficar depois da hora para dar conta das tarefas que Katrina, a chefa, jogava em seu e-mail faltando quinze pras cinco. Tinha de sorrir e dizer que daria conta. Precisava ignorar a dor nas costas provocada, em parte, pela pior cadeira do setor. Precisava silenciar a reclamação dos dedos do pé esmagados na droga do sapato. Nada dizia ao observar os outros funcionários se despedirem no horário em ponto. Nenhum deles dependia de um ônibus que passava de meia em meia hora, abrindo as portas para o atocho de passageiros pós-labuta. — Dona Quitita, me prenderam aqui por mais meia hora e eu só vou conseguir chegar por aí lá pras oito. Segura o menino pra mim? — pediu Leo ao telefone. Dona Quitita disse que sim, claro. Não adorava tomar conta do garoto, mas Leo sempre fazia questão de pagar na data certa, direitinho, com acréscimo e tudo. Naquela sexta-feira, Leo contemplou a planilha em sua tela e enrugou a cara em um protesto cansado e silencioso. Só queria relaxar o corpo e a mente, pedir uma comida pra ele e pro filho, conversar no WhatsApp jogado no sofá e beber cerveja com a quase solidão e, quem sabe, ligar para Lucilene. Aquela pele macia e deslizante… Mas não. Trabalho simbolizava a preciosa fonte. Obedeceu. Finalizou o serviço. Aguardou o busão no ponto lotado. Espremeu-se nas condições desumanas do transporte público: um sovaco azedo na lateral direita e, à esquerda, uma banha colada com a sua; a pélvis de alguém roçando por meia dúzia de passageiros até descer do veículo; o chiclete de desgosto mastigado entre os dentes de Leo; um batidão no ouvido, pra sextar nem que fosse apenas em sua imaginação. Quando chegou à casa de Quitita, ele recebeu a paz costumeira. Acontecia quando via o filho depois de um dia inteiro. Uma coisa breve no peito, que só pai e mãe saberiam explicar direito, uma dose diária de alegria e amor apenas por saber que seu filho existe e tem saúde, ninguém lhe fez mal nenhum, está alimentado, brincando sozinho, e está tudo bem. Agradeceu à vizinha milhões de vezes pelo cuidado e partiu com Renatinho pra casa. Fez as perguntas de sempre. Tudo tão automático que enquanto Leo perguntava, pensava se as fórmulas nas planilhas estavam corretas, se havia cerveja na geladeira, em qual tipo de comida pediria e no futebol do dia seguinte. A escola foi boa? Tem exercício pro fim de semana? Se comportou direito? Ajudou a velha com a casa? O filho respondeu como sempre. Pra tudo balançou a cabeça em sinal positivo. Pelo menos alguma sorte eu dei na vida. Este menino não me dá trabalho algum, pensou ele. Acendeu as luzes, escancarou as janelas para expulsar o bafo da casa e mandou o moleque ir pro banho logo. Deu um jeito rápido na cozinha, que estava cheia de louça acumulada, abriu um latão de Brahma e um aplicativo de pedir comida. Pensou na “Batata Frita da Carola”, entupida de cheddar, maionese, ketchup e farelo de mortadela frita se fingindo de bacon. Para Renatinho… — Ô Renatinho! — berrou da cozinha. Detestava chamar o filho de Renato, porque isso lembrava a mãe do garoto. Renata tinha colado um par de chifres na testa de Leo e viajado com um gringo para o exterior. — Bora, Renatinho! Vem cá. O menino não demorou a aparecer na entrada da cozinha. Tinha a pele mais escura do que a dele, pretinha igual à da mãe. O sorriso branquinho, mesmo sem escovar os dentes direito. A pele era preta e o menino era de ouro. — Filho, o que é que você vai querer lá da Carola? Hoje é sexta-feira, de jeito nenhum eu pilho nesse fogão pra fazer comida. Hã? Fala. Renatinho balançou os ombros com indiferença. — Isso aí não tem, não. Fala o que você quer. Renatinho nada disse. — X-Tudo tem muita gordura pra você. Cachorro-quente? Batata? Não sei — sugeriu ele, já irritado. — Fala, filho. Anda. O gesto do menino chamou sua atenção: o olhar doce foi ao chão e os ombros também estavam caídos. A tristeza do filho expressa em cada centímetro do corpo. Leo largou o celular na bancada e colocou as mãos na cintura, alarmado. — Aconteceu alguma coisa, filho? Fala, Renatinho! É o quê? O menino fez um bico torto. Balançou os ombros outra vez. Leo se aproximou e ficou de cócoras, de frente para o filho. — Tomou porrada na escola? Tu deixou fazerem alguma coisa contigo? O filho fez que não. — Então é o quê? Impotência. A sensação de não saber como acessar o universo do filho o ameaçou, como fazia algumas vezes. Um estresse debaixo da pele, no final das contas, transformava-se em ódio. Não pelo menino, por ele mesmo. Pelo passado, a história mal resolvida com Renata. Nunca imaginara seu futuro como um pai tão novo. — Você não sabe mais falar? — perguntou ele, com a voz mais elevada. As mãos feito garras, grudadas nos braços do menino. Olhos arregalados. Renatinho fez que não. — Ah, não sabe? O gato comeu sua língua? De ombros encolhidos, Renatinho se esforçou para tirar o olhar do chão e levá-lo para o rosto do pai. Abriu a boca, mexeu os lábios, tentou gritar. Não saía um sequer resquício de voz. Leo descolou suas mãos do menino como se estivesse segurando uma coisa errada. Recuou o corpo com a testa toda franzida. — Para de caô, Renato. A essa hora da noite. Porra, eu tô cansado. Fala alguma coisa agora! O menino se esforçou para gritar, falar. Parecia uma televisão no modo mudo. — Tá me dizendo que perdeu a voz? Renatinho fez que sim. Leo revirou os olhos. — Puta merda. Era só o que faltava. Passou a noite inteira pesquisando no Google. O desespero batendo. Na Internet, diziam que o moleque tinha passado por um trauma, mas que trauma o quê! Conhecia o filho! Renatinho nunca fora de briga, era um molenga. Trauma coisíssima nenhuma. A avó do menino, mãe de Leo, conseguiu ser pior do que pai dos burros online. Diagnosticou tudo como nódulos nas pregas vocais e profetizou: “Se o moleque não for levado ao médico logo, o câncer vai se espalhar pelo corpo inteiro em dias”. Cruz credo. Ave Maria, cheia de graça… Rogai por nós, pecadores. Leo apelou para a fé e quase rezou um Pai Nosso. Não tinha dinheiro pra lidar com uma coisa dessas. Câncer era coisa de gente rica e branca. Apesar da firmeza das opiniões, o medo de ver alguma coisa séria acontecer com o filho sequer o deixou dormir. Até esqueceu da cerveja e da Batata Frita da Carola e terminou a sexta fazendo um miojo de galinha caipira para os dois. Apagou na cama depois de refazer mil perguntas que o filho não sabia como responder. Tudo não passava de uma boca muda, um ombro balançando e uma cara de tacho. No dia seguinte, Leo levou o menino em uma clínica médica 24 horas. Aguardaram por um tempo na recepção. Ele preferia nem olhar para a cara de Renatinho, pois, agora, ele lembrava Renata, sempre causando problema, sempre gerando despesa e dor de cabeça. Mas que merda! Não podia ter paz nem para a pelada de sábado? Vinte minutos após preencherem a ficha, um homem alto, parrudo e vestido com um jaleco alvo chamou-o com um sorriso falso. Algo em sua cara detonava uma possível ressaca. Em questão de segundos, Leo entrou no ringue mental de comparações com o outro homem: grana não é sinal de felicidade. Porra, mas aí é fácil demais. Ó lá! Trabalha três vezes na semana, tem tempo pra malhar. Crossfit, rolezinho na praia… Deve estar achando que tá fazendo caridade. Pra que andar com um relógio desses? — Tudo bem, papai? — perguntou a doutor quando se acomodaram na saleta branca. — Tudo ótimo. E você? — saudou Leo, descendo dois tons da voz. — Ele é o Renato? E aí, cara? Tudo certo? Renatinho confirmou com a cabeça, intimidado. — O que trouxe o senhor aqui? — perguntou o médico ao pai. Leo não manteve o sorriso por muito tempo. — Meu filho perdeu a fala — disse. — Como assim? — Eu perguntei umas coisas pra ele ontem e ele não respondia — disse Leo, sentindo-se um idiota. Não, um pai desnaturado. — Não se sabe como, nem nada. O doutor encarou o pai como se não acreditasse em porcaria alguma. Decidiu inclinar o rosto para o moleque e impostar uma voz ultra mega power simpática. — Fala alguma coisa pro tio aqui. Tudo de novo. Renatinho tentou, tentou, mas nada saiu. O doutor não parecia convencido. — Pera aí — disse ele, correndo até um canto da pediatria e catando uma lousa mágica, daquelas que se escreve e se apaga num piscar de olhos. — Ele sabe escrever, pai? — perguntou o doutor. Pai o cacete. — Claro. Ele tá no segundo ano — respondeu Leo. — Tá. Então… Tá vendo isso aqui, meu chapa? — brincou o doutor, entregando a lousa para o menino. — O que o tio perguntar, você vai escrever a resposta aqui, tá bom? Vamos lá? O menino olhou para o pai em busca de confirmação. Leo fez que sim, sentindo-se um otário por não ter tido a mesma ideia antes. — Há quanto tempo você não consegue falar? Leo sabia que o filho responderia balançando os ombros, mas Renatinho seguiu o propósito pelo qual todas as crianças nasceram: fazer os pais passarem vergonha. Ele simplesmente testou a caneta na lousa e escreveu: “Eu não lembro”. Leo fuzilou-o com o olhar. — É normal eles darem mais atenção ao médico, pai. Aqui… Aconteceu alguma coisa nova na escola? Fizeram alguma coisa com você, Renato? “Tudo normal”. — O que é normal, não é mesmo? — Desta vez, a pergunta foi para o pai. — Alguma situação diferente na rotina dele? Algo que possa ter causado estresse ou nervosismo? — Não. Que eu saiba, não — respondeu o pai, quase ofendido. — Você tem medo de alguma coisa, Renato? “Caranguejo” — ele escreveu. — Ele foi exposto a algum caranguejo durante a semana? Leo não gostou nem um pouco da entonação do doutor ao dizer “caranguejo”. O que estava insinuando? Que ele não sabia cuidar do próprio filho? O pai negou e a sessão durou mais cinco minutos com todos os tipos de perguntas. No final, o doutor tomou a lousa de volta, fez uma careta para Leo e disse: — O nome disso é afasia. A vivência no colégio público, às vezes, é muito complicada. O ambiente da periferia pode trazer diversas mazelas e estresse social, até mesmo transtornos mentais. Leo riu pelo nariz, descolou o traseiro da cadeira e puxou o filho pelo pulso. — Olha só! Meu filho não tem problema mental, não, seu animal. Pra sua informação, a gente não mora na comunidade. Leo encheu a boca e soltou: — Racista de merda! Até questão de pagar um Uber na volta pra casa, Leo fez. Provavelmente, para se livrar do preconceito no olhar do doutor branco. Acompanhava uns influenciadores digitais e muitos deles falavam sobre coisas de preto. Agora, andava muito bem informado e até sabia da possibilidade de o doutor jamais entender o quão preconceituoso estava sendo, contudo, não toleraria abusos. Renatinho permaneceu quieto durante toda a viagem e, pela primeira vez em um longo tempo, Leo percebeu a enorme ponte entre ele e o moleque. O lado dele cheio de cálculos, memórias perdidas, os beijos de Lucilene, preocupações com o trabalho, a rotina da vida, arrependimentos, a cerveja, a pelada e a agenda do filho. Trabalhar para sobreviver e não para viver. O lado do garoto estava mais para um matagal desconhecido. Leo cruzou os braços, indignado. Não sabia sequer como se aproximar da ponte. Quando foi que nos tornamos tão distantes mesmo tão perto? Cancelou a visita à casa da mãe e focou na ponte! Leo estava tomado da certeza de que, a qualquer momento, o menino voltaria a falar. Ele só precisava sentir-se livre. Coisa de criança. Era isso e ponto final. Cercou Renatinho de liberdade: videogame à vontade; suco de caju a rodo; preparou uma lasanha, intercalando camadas de sabor e perfeição; levou-o ao shopping no domingo, enfiou-lhe uma casquinha mista pela goela, parcelou camiseta, bermuda e tênis – tudo em 10x – e voltou de Uber Comfort pra agradar. Tentou dar ao menino o espaço necessário para que a língua soltasse, mesmo checando de uma em uma hora. O esforço foi em vão, mas, durante a noite, em vez de simplesmente ver o menino passar pro quarto e dizer boa noite, chamou-o, beijou-o na testa e disse: — Boa noite, cara. O gesto pareceu-lhe estranho. Um antídoto para uma ferida naturalizada. No primeiro dia da semana, fez questão de levá-lo à escola. Chegaram atrasados. Leo deu três soquinhos na porta da sala e chamou a professora com um gesto. Assustada, ela veio em sua direção e saudou Renatinho com um afago na cabeça. O menino escorregou para dentro da sala e a professora forçou um sorriso para Leo. — Bom dia, professora. — Bom dia — saudou ela, desconfiada. Era uma mulher amarelada, de meia idade, cabelos curtos e um vestido florido cafona. — O senhor é o pai do Renato? — Isso. Professora, a senhora notou alguma coisa diferente com o meu filho nos últimos dias? A testa da professora assumiu alguns vincos. — Como o quê, por exemplo? — Bom… Ele perdeu a fala. É uma doença aí, vinda do estresse. Não sei se a senhora percebeu algo de novo nele… — Sabemos disso — disse a professora com um olhar estranho. — Achamos que o senhor não gostaria de falar sobre o assunto. Nunca compareceu às reuniões, não atende aos telefonemas, não responde as mensagens do caderno. Nada. — É que eu trabalho muito. — Eu também — disse a professora, desgostosa. Ambos se encararam sem saber o que falar, mas a professora decidiu continuar. — O senhor nunca considerou a ideia de levá-lo para um colégio com crianças especiais ou algo assim? — Quê? Não, meu filho não é nada disso. É só uma coisa de estresse. Levei ele ao médico no fim de semana. — Ah, só agora levou ele ao médico? — Por quê? Há quanto tempo ele está assim? — O coração de Leo batia com um leve descompasso. A paciência em despedida. A professora riu sem querer acreditar. — O Renato nunca falou. Ninguém aqui jamais ouviu a voz dele. Você quer dizer que ele não é mudo? O chão de ardósia pareceu se abrir sob os pés de Leo. O coração acelerado. Puta merda. Autoritário, o pai empurrou a porta e andou até o filho, ignorando seu olhar de protesto. Colocou de volta na mochila o material já organizado sobre a carteira e puxou-a para si. Ignorou os olhares e arrastou Renatinho para fora da escola. Longe o suficiente do julgamento estudantil, Leo flexionou os joelhos para ficar na altura do menino. Sacudiu-o com força. — Bora! Você tem que falar comigo — exigiu. Os olhos do menino se encheram de água. O bracinho tão fino que os dedos do pai completavam a volta ao agarrá-lo. — Anda, Renato! Que história é essa de ser mudo? Você sabe falar. Por que tá me fazendo passar tanta vergonha? As lágrimas escaparam pelos olhos do menino. — Engole esse choro agora — ameaçou, falando entre os dentes. Leo espiou ao redor, desconfortável com a cena. — Tu é um homem, já! Chorando à toa. Engole isso. Você é o segundo homem da casa, cara. Renatinho fungou e apertou a barriga por dentro, numa tentativa de impedir o choro. — Você engoliu alguma coisa? O filho assentiu. — Tá na sua garganta agora? Leo xingou. Se viu obrigado a discar para o trabalho e comunicar sua ausência. Duas horas depois, conseguiu atendimento em um ambulatório. Todos olhavam-no como se estivesse louco. — Tem alguma coisa na goela do meu filho. Verifiquem a goela do meu filho! — dizia de dois em dois minutos. E verificaram. Leo respondeu a todas as perguntas da médica. Viu seu filho passar por, pelo menos, quatro exames. Foi somente depois da ressonância magnética que a doutora o chamou novamente. Sentaram-se. Renatinho e Leo encarando a médica, uma mulher negra, de cabelos presos e batom cor de rosa. — Não gosto muito de dizer isso, mas, pai, o senhor tinha razão. O Renato engoliu algo, sim — disse ela, com a voz grossa e rouca. Eu sabia! Eu sou pai, pô. — É o quê, doutora? Como é que vão tirar isso dele? A mulher sorriu. — É um pouco mais complicado, pai — contrapôs a doutora. — O que ele engoliu quebrou lá dentro. Leo arregalou os olhos. Alarmado, olhou para o filho. O menino desviou o olhar carregado de culpa. — A boa notícia é que vocês vão poder resolver isso em casa — avisou ela com um sorriso. Os dedos fizeram uma receita médica deslizar pela mesa em direção aos pacientes. — Esse tipo de coisa é muito comum em diversas configurações familiares. Isso aqui é um chá-de-solta-a-língua. É um chá caseiro e supimpa! Faz tudo o que está na receita, segue tudo certinho, que ele vai ficar bom, ó, num estalar de dedos! O olhar de Leo correu desesperadamente pelo papel. Anotou tudo em mente. Cada letra esquisita reluzia como um sol a queimar a opressão dos últimos dias. Era a receita mais esquisita que ele já vira em toda a sua vida. Até duvidou, mas se uma médica daquele porte estava dizendo, preferia obedecer. Uma doutora negra merecia todo o respeito. Passou no hortifrúti e comprou todos os ingredientes: amora madura; arroz negro; chocolate em pó; repolho roxo; jabuticaba. Tudo coisa fina. Quando chegou em casa, mandou Renatinho ir para o banho. Preparou o chá, fazendo cara de vômito. Cruzou os braços na cozinha, recostou-se sobre a pia e aguardou. O medo e a excitação assaltando-o a todo momento. Era um péssimo pai? Quase tudo o que fazia na vida era para o filho. O trabalho incessante para pagar escola, comida, roupa, passeio, tudo o que não teve quando pequeno. Poucas pessoas no mundo conheciam de verdade as dificuldades de se criar um filho sozinho, sem a presença da mãe. Tinha falhado em sua missão? Em que momento as coisas tinham começado a desandar? O peso sobre suas costas prolongava-se por muito tempo. As feridas escondidas embaixo do tapete. A solidão alastrada no peito e disfarçada com papos rasos, trabalho e filme de ação de vez em quando. De repente, Leo permitiu a si o que não permitia ao filho. Uma rara gota escapou de seu olho, salgada como o mar. Ele levou o ombro até o rosto para secá-la. Inalou o cheiro exótico do chá. Renatinho apareceu na entrada da cozinha e o pai conduziu-o até o sofá da sala apertada. — Não tá tão quente. Pode beber tudo. O menino anuiu com cara de nojo. Leo travou a mandíbula por alguns segundos, prendendo o choro que queria retornar. Renatinho, seu filho, era tão bonito! Pretinho como a noite mais escura. Os olhos redondos e alarmados. O nariz pontudo. A pele de bebê. Ele nem percebeu quando sua mão direita escapou para o rosto do filho, alisando-o de leve, desenhando os formatos do rosto com os dedos, aguardando até que ele sorrisse de leve e balançasse a cabeça, desviando-se do toque do pai. O sorriso derreteu-o por dentro. Seu filho não era mudo, algo tinha o silenciado. Faria de tudo para recuperar o tempo perdido. — Beba. O menino segurou a caneca com as duas mãos e ingeriu o líquido preto. Uma bebericada transformou-se em um gole. E outro. Mais outro. Bebeu até esvaziar a caneca. Então veio a ânsia de vômito. Tão forte e rápida que Renatinho não conseguiu se levantar. No chão da sala, despejou o vômito como Leo nunca antes vira. Um líquido branco e espumante espalhando-se pelo taco com cheiro de azedume. O pai assistiu à cena com certa aflição. Chegou a investigar o vômito com os olhos, a procura do objeto quebrado, mas nada encontrou. Renatinho apenas secou o queixo empapado de espuma. — Me sinto feliz — disse ele. Leo escondeu o sorriso. A voz infantil do filho revigorando todo seu interior. Naquele momento, Leo teve a certeza de que não ouvia o menino de verdade há incontáveis meses. — Filhão — disse Leo enquanto os dois se olhavam em uma felicidade estranha. — Ainda tem alguma coisa presa na garganta? O que é? — Os nomes que eles me chamavam. — Nomes? Aonde? Na escola? — Sim — Renatinho deixou um sorriso tímido escapar. Parecia gostar de ouvir a própria voz, em vez de confirmar tudo com movimentos de cabeça. — Que nomes? De repente, a expressão de Renatinho anuviou-se. Ele fugiu com o olhar por um tempo e precisou tomar coragem para continuar: — Eles me chamavam de “cocozinho” ano passado. Depois, meu apelido virou “valão”, “boca de valão”. O pai sentiu o coração trincar de ódio. — Eles quem, meu filho? — Todos eles. — E por que você nunca me contou nada? — Eu tentei, mas eu sentia vontade de chorar e o senhor me mandava engolir o choro e não dar nem um pio. Leo engoliu em seco. Desviou o olhar para o chão, envergonhado. Quando falou, nem tinha mais o tom mandão, como se o filho tivesse subido para um degrau superior ao seu. — E o que é isso no chão? — Eu engoli sabão de coco. — O quê? Por quê? — Pra ficar mais branco. Leo encarou o filho com um vazio no olhar. Abraçou-o como não fazia há muito tempo. Ficaram os dois colados, em silêncio, transferindo um para o outro uma energia inexplicável. Coisa paterna. Coisa divina. Quando deixaram de abraçar, Leo segurou o rosto do filho e olhou-o profundamente. Viu a luz da lua no olhar de Renatinho. Um mundo incrível a se desbravar. — Você é tão lindo, meu filho. Não deixe que ninguém coloque o contrário na sua cabeça. Preto é lindo. É isso o que nós somos. O pai ama você. A ponte entre os dois se encurtou bastante. Dali pra frente, pai e filho seriam bons amigos. A receita, Leo nunca mais encontrou. Durante longos meses, todas as noites, depois de colocar o filho para dormir, o pai se deitava na cama de casal com o estranho pressentimento de ter lido tudo errado. É que as palavras da receita eram mágicas. E, no fundo, ele não poderia imaginar o que estava escrito: Chá de afeto preto para meninos pretos Ingredientes: 500g de afeto 1 xícara de olho no olho 1 visita para reconhecimento de ambiente 1 dose de autoanálise 1 gota de lágrima Calor humano a gosto Modo de preparo: Junte tudo e entregue ao seu filho por cinco minutos. Conversem. Finalize com um abraço e deixe que o menino veja o quanto você está disponível para o que der e vier. Palavras são necessárias para curar as dores do coração.



Stefano Volp é formado em Jornalismo e autor de 4 livros de ficção. Com passagem pelo Laboratório Novas Histórias 2020, Laboratório de Narrativas Negras 2019 (Flup e Rede Globo) e Academia Internacional de Cinema, Volp é roteirista do projeto "Proteja Os Seus Sonhos", série de 3 curtas produzidos em parceria com a Som Livre, Mangolab, AUR e 10 artistas da cena do R&B nacional. Volp é coordenador editorial na editora Escureceu e a partir de 2021 terá suas obras publicadas pela Harper Collins.

Ele desenvolve seu projeto "Águas de Aquário" na Incubadora Paradiso 2021.

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