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“O riso do morto”

Reginaldo Prandi



Naquela noite fria de julho, o céu deveria estar estrelado como nunca, mas não estava. O céu encoberto e sem lua fazia da noite ali na roça um escuro só. Nem sequer um vagalume dera as caras. As mulheres tiraram seus xales dos baús, os homens vestiram seus casacões pesados e pelos caminhos poeirentos do lugar foram para a casa onde o morto era velado. Na sala pobre, o morto, sobre um estrado improvisado, repousava sobre as tábuas forradas de pano, enquanto não chegava o caixão encomendado na vila. Os amigos, os parentes e os curiosos foram chegando e se sentando nos bancos encostados nas paredes. De vez em quando alguém puxava uma reza. De vez em quando alguém passava uma bandeja de café. Na cozinha os homens se serviam de aguardente, que era para esquentar o frio e espantar a tristeza. Tudo de acordo com o costume do lugar. Para matar o tempo, conversava-se de tudo, se falava do morto, dos vivos e do que não é nem uma coisa nem outra. Os mais íntimos se revezavam junto ao corpo, e aproveitavam para louvar as qualidades do defunto. Foi então que o morto começou a sorrir, isto é, foi então que um ou outro teve essa impressão. À fraca luz das velas que circundavam o estrado, parecia que o morto sorria quando alguém se aproximava. Na verdade, um sorriso debochado, silencioso mas debochado, com certeza um riso de escárnio. Quem viu tratou de comentar com outros e, um por um, todos foram comprovar o despautério. No começo foi um susto geral, coisa de arrepiar os cabelos, de dar mesmo um frio na espinha, de sair correndo. Logo virou uma festa. O morto ria, era verdade verdadeira. Normalmente o morto tinha uma cara inexpressiva e sombria que é a cara que qualquer morto tem, mas de repente o rosto se descontraia e a boca traçava um contorno de risada, o sorriso de quem se diverte com uma situação. Mais de um dos presentes foi cutucar o falecido para ver se ele estava realmente morto. Ele estava. Morto, mortíssimo, morto a bala. O coitado morrera baleado numa emboscada numa curva traiçoeira da estrada. Quem o matou, não se sabia. De certo algum bandido que nem por lá morava e que acertou o coitado por engano, por distração ou por razão nenhuma. O homem não tinha inimigos nem credores. Não tinha dinheiro nem bens que valessem a pena. Na verdade, ele tinha, mas só ele sabia. Tinha um relógio de bolso de ouro maciço, de cem rubis, preso a uma grossa corrente igualmente de ouro. Herança de um padrinho rico que ele nunca mostrava a ninguém. Com medo de roubo, inveja ou quebranto, mantinha o relógio escondido num bolso disfarçado no forro do paletó. Olhar as horas ou dar corda no relógio, somente quando não havia ninguém olhando. Pelo menos era o que ele pensava, que ninguém, além dele e da já falecida sua mulher, sabia do relógio. De todo modo, na câmara ardente, a balbúrdia estava instalada, o morto ria e ninguém sabia o que fazer. Um dos vizinhos, sentado num canto da sala, até então quieto como uma pedra, mas que já havia ido muitas vezes à cozinha, onde, sozinho, já esvaziara uma garrafa, levantou do banco e se aproximou do morto. Bem na cara do defunto, ele gritou alto:  ― Está rindo do quê, seu desgraçado? O riso do morto rompeu o silêncio e se transformou numa comprida gargalhada. Depois, o defunto olhou bem para o homem que o interpelava e disse: ― Estou rindo de você, é claro, meu caro compadre. Primeiro você me matou numa emboscada. E agora está aí se borrando nas calças de medo de ser descoberto, seu covarde cagão. Em seguida o morto se calou, dessa vez para sempre, e não riu mais. A confusão agora não tinha mais medida: gente gritava, gente corria, gente desmaiava. Em meio ao pandemônio em que virou o velório, o assassino desmascarado tentou fugir. Foi impedido por dois policiais do vilarejo, que, à paisana, tinham ido tomar seus tragos no velório. Mais tarde, na casa do assassino, a polícia encontrou o revólver e o relógio: a arma e o motivo do crime. No dia seguinte, com o assassino preso, o caixão entregue e o morto sossegado, o enterro transcorreu tranquilamente.

 

Rolando Prandi nasceu em Potirendaba - SP em 1947 é sociólogo, professor e escritor brasileiro. Doutor (1976) e livre-docente (1989) em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor titular desde 1993 do Departamento de Sociologia da mesma universidade. 





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