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A cura Amilcar Bettega

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Ainda bem que temos o doutor, esse homem que não nos abandona. A situação é difícil, mas sabemos que ele tem trabalhado. Nos dias em que nosso ânimo nos põe um pouco mais vivos é que percebemos toda a dedicação do doutor e de sua equipe. São os momentos em que a febre arrefece e, quase naturalmente, nos tornamos mais observadores, desconcentramo-nos um pouco da luta contra a doença e podemos ver melhor as coisas, o trabalho do doutor. ⠀⠀⠀⠀⠀ É mesmo admirável que ele se arrisque tanto vindo até aqui, vivendo boa parte do seu tempo neste meio infecto e desafiando o vírus com essa coragem que nos espanta. Todos nós sabemos que ele e sua equipe não precisam disso, que poderiam muito bem trabalhar em meio à segurança da cidade, nos seus gabinetes e com todos os recursos disponíveis: computadores, laboratórios, os melhores equipamentos. Mas não. Todos os dias eles vêm, mesmo sabendo que poderão, ao final da jornada, levar o vírus para o seio das suas famílias. Já refletimos muito sobre o fato de as pesquisas serem feitas aqui, com tantos riscos para eles. No início achamos que seria mais sensato recolherem amostras, talvez levarem um de nós para ser estudado em laboratórios mais apropriados, mediante as prudências da assepsia. Mas aos poucos fomos entendendo (eles nos fizeram entender) que fora daqui o vírus talvez já seja outro vírus, outra coisa. ⠀⠀⠀⠀⠀Não sabemos, e talvez jamais saibamos, o que veio primeiro: se foi o vírus que aqui se instalou e causou toda a degradação, ou se foi a degradação, a insalubridade do nosso meio que gerou o vírus. São dúvidas que nos assaltam, mas não cabe a nós esclarecê-las. Primeiro — e isso eles nos fazem ver todos os dias — temos que nos ocupar dos nossos corpos, do pouco que ainda resta da nossa saúde. ⠀⠀⠀⠀⠀ E o que para nós talvez seja um consolo parece ser o ponto decisivo e de causa ainda não desvendada pelas pesquisas: o vírus não afeta diretamente nenhum órgão determinado, o corpo se mantém clinicamente saudável, apenas cai sobre nós o cansaço. Mas nos casos mais graves é um cansaço que aniquila, que pesa nos ossos, que imobiliza o corpo até fazê-lo desabar. A degradação das nossas casas e ruas, o lixo, toda essa coisa inóspita que nos rodeia só vem aumentando com o cansaço. Mesmo o simples movimento de erguer a mão ou de abrir a boca para dizer uma palavra torna-se uma tarefa profundamente penosa; e o que acaba acontecendo é que nos deixamos ficar, deitamos numa cama, no chão ou mesmo na rua, e nos deixamos ficar. Somos há muito uma gente cansada, que se deixa ficar. Nosso corpo, ali estirado, continua funcionando, urinamos, defecamos, transpiramos, mas se não passa alguém para nos arrastar até o hospital, permanecemos deitados até morrer de inanição. E aí entra outro dado que talvez tenha surpreendido nas pesquisas: a resistência do corpo, mesmo sem ser alimentado. Muitos de nós sobrevivem meses e meses, imóveis sobre a calçada. É um ponto a nosso favor. Enquanto os médicos não acham a cura, nós vamos resistindo. ⠀⠀⠀⠀⠀Na última comunicação pública do doutor e sua equipe, eles anunciaram estar já comprovado que a memória é afetada, numa segunda fase, após certo estado febril e a sensação de cansaço. Discutível, pensamos no início. Mas depois aceitamos que temos nos tornado realmente muito confusos, às vezes esquecemos palavras, outras esquecemos fatos ocorridos pouquíssimo tempo antes. Sim, nossas lembranças têm se tornado pouco confiáveis, e não há nada mais inquietante do que não poder confiar nas lembranças e dispor apenas dessa memória branca e esfumaçada. ⠀⠀⠀⠀⠀Hoje, por exemplo, há algum consenso entre nós de que já fomos um bairro da cidade, que vivíamos muito próximos deles e que muitos de nós inclusive já estiveram lá. Mas jamais conseguiremos afirmar tal coisa com plena certeza. Provas concretas não existem, embora não haja outra explicação para o fato de cada um de nós ter, dessa ou daquela forma, uma ideia bastante clara de como é a cidade. Ou será que a imagem de coisa sadia vem de um suposto tempo em que nosso território também foi sadio, antes do vírus? Será que houve um tempo antes do vírus? ⠀⠀⠀⠀⠀Estamos morrendo mais depressa. ⠀⠀⠀⠀⠀Daqui da janela do hospital (os doutores chamam de centro de pesquisa; começou muito pequeno, hoje é imenso) vemos os corpos sendo jogados diariamente no pátio. Antes eles eram incinerados, acreditava-se que o fogo ajudaria a eliminar o vírus, mas logo os doutores abandonaram essa prática porque era um processo muito dispendioso. Além do custo do combustível, o forno rapidamente se tornou pequeno para a quantidade de corpos. Seria preciso construir um maior, o que significava novo investimento numa obra que não daria retorno direto e substancial. ⠀⠀⠀⠀⠀Os médicos optaram por jogar os corpos no pátio do hospital. Isso colabora para tornar nosso ambiente ainda mais nocivo, mas eles têm que se concentrar nas pesquisas, são muitos os problemas para atacar e não podemos desperdiçar o conhecimento deles. Mesmo que aumente a insalubridade, mesmo que os corpos amontoados tornem o quadro ainda mais mórbido, é preferível saber que o doutor e seus homens estão debruçados sobre o nosso problema. ⠀⠀⠀⠀⠀ Nós também nos esforçamos, apesar do cansaço. Aqui mesmo, no hospital (ainda não nos acostumamos a chamá-lo de centro de pesquisa), onde estão os infectados mais graves, é total o nosso empenho para que os cientistas não sejam perturbados e tenham todas as condições para trabalhar. Chamamos a nós as responsabilidades menores, e os que se sentem melhor cuidam dos outros doentes, deixando os médicos inteiramente livres para os estudos. Agora eles chegam ao hospital e já vão direto para a sala de conferências, permanecendo lá o dia inteiro. Às vezes o doutor pede a um dos seus assistentes que colha alguma amostra de sangue para que possam analisar a evolução do vírus ou testar uma nova substância. Estamos muito ansiosos, mas isso é normal. Há sempre muitos de nós aglomerados à porta da sala de conferências, à espera de alguma nova descoberta. Pelo vidro da porta, quando a cortina está erguida, vemos o doutor explicando gráficos, projetando slides para sua equipe. Depois todos discutem à exaustão cada um dos slides, ou se prostram com semblantes preocupados, ou simplesmente baixam a cortina de forma brusca e acintosa. Então entendemos que ainda estão longe de encontrar a solução. Mas não podemos esmorecer, dizemo-nos uns aos outros, a ciência não tem limites e os homens são obstinados. Está certo que não temos muito tempo, mas ainda estamos aqui, e vivos. ⠀⠀⠀⠀⠀ O mau cheiro dos corpos que apodrecem no pátio vai aumentando. Notamos também que o clima tem se tornado mais úmido. Nas paredes do hospital e das casas fermenta um mofo grosso e peludo. Quando chove, e tem chovido muito nos últimos tempos, nossas ruas ficam cobertas por uma camada de barro e lixo que não sabemos exatamente de onde vem. O horror é quase insuportável, nesses dias. E ainda assim o doutor vem, ele e sua equipe, metidos em suas grossas capas de chuva e suas botas de borracha com solado de dez centímetros. Eles cruzam ruas atulhadas de barro, abrem caminho em meio ao lixo das calçadas, suportam o mau cheiro do hospital e vêm, vêm cheios de energia para mais um dia de estudo e pesquisas. ⠀⠀⠀⠀⠀A ideia do rio nasceu justamente das dificuldades que eles enfrentavam após as chuvas torrenciais. As águas se acumulavam nas ruas e custavam a baixar, formando imensas lagoas fétidas que complicavam os deslocamentos. Mesmo sendo um problema externo à área que dominam, os médicos o detectaram e convocaram os engenheiros. A equipe dos engenheiros veio após uma grande chuva e mediu, fotografou, topografou, analisou e, em pouco tempo, apresentou o laudo e a alternativa: a abertura do rio, entre a cidade e o nosso território, que serviria para escoar a água das chuvas e, mais ainda, funcionaria como obstáculo extra ao avanço do vírus. ⠀⠀⠀⠀⠀O rio foi aberto. Inicialmente um fiapo d’água riscando a terra; depois o leito foi se alargando; hoje parece que não para mais de crescer, entre nós e a cidade. Daí uma certa impressão de que o rio nos empurra para longe. ⠀⠀⠀⠀⠀Mas o rio significa muito para nós. A paisagem do rio nos enche de esperança, mesmo sabendo que suas águas estão repletas da lama das nossas ruas e infestadas do vírus que nos infesta o corpo. Há muito mais, nas águas do rio. Por isso, olhar para o rio é tão emocionante para nós. Ele é a estrada pela qual todos os dias o doutor e sua equipe chegam até nós, espécie de rio-ponte que nos comunica com a cidade distante. Mas não é só isso. ⠀⠀⠀⠀⠀ Ele fica no poente, o rio, e uma das imagens mais fortes e elevadas que temos por aqui é a de quando o sol se põe além dele, além ainda da cidade. Primeiro ela, a cidade, brilha como se fosse uma joia prateada sob a luz incisiva do sol. É um brilho metálico e vigoroso, que lembra uma máquina de aço polido em perfeito e constante funcionamento. Depois vai se tornando dourada, espécie de urna desabotoada que se prepara para agasalhar o sol em seu útero morno. E é justo nesse momento — que, sem exagero, chamamos de sublime — que o barco do doutor e sua equipe parte de volta à cidade. E o que parece impossível acontece: a paisagem, completada pelo barco, torna-se ainda mais tocante. Ele, o barco, vai despejando uma língua branca de espuma atrás de si, e quase podemos ver os peixes trêmulos à volta das borbulhas, seus dorsos prateados a resvalar uns contra os outros e as bocas minúsculas que estouram centenas de ovas de ar e água numa misteriosa e suicida perseguição dos hélices. Sim, há quem diga que no rio existem desses peixes fascinados, que nadam no leite dos barcos e morrem contra as pás vertiginosas dos motores a fabricar delícias gasosas por onde passam. Ele, o barco, vai um tanto lento, com a popa abaixada pelo peso dos inúmeros relatórios, os gráficos, as estatísticas, o resultado de mais um difícil dia de trabalho do doutor e sua equipe. Mas sabemos que no seu rastro vai aquela infantil algazarra de peixes reluzentes, que se roçam e roçam a morte num saudável perigo de borbulhas. ⠀⠀⠀⠀⠀Pois essa imagem tem um traço de divino, que nos enleva. É nessa hora que rezamos. Rezamos por e para aqueles homens (secretamente também rezamos pelos peixes). É nessa hora que sentimos, mais forte do que nunca, a esperança de que amanhã, depois, qualquer dia desses, o doutor venha e desça do barco para em seguida convocar uma coletiva. Um dia ele vai finalizar suas pesquisas, vai abrir o grosso volume da sua tese diante de nós, vai apresentar os dados, as interpretações e as conclusões. ⠀⠀⠀⠀⠀E cansado, envelhecido, mas feliz, o doutor vai nos dizer — temos absoluta certeza de que ele virá para nos dizer as palavras que mais esperamos. ⠀⠀⠀⠀⠀Nesse dia o rio estará, mais do que nunca, apinhado de peixes bêbados, que levantarão no fundo do rio uma silenciosa nuvem de pó.

 

Nascido no Rio Grande do Sul em 1964, Amilcar Bettega é formado em engenharia civil e mestre em literatura brasileira. Recebeu por sua obra os prêmios Açorianos e Portugal Telecom. (Cia das Letras)


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