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Pequena camicase Fabiane Guimarães


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Estava acostumada aos homens que tinham medo. Que pediam que ela se despisse, antes de tudo, e esfregasse a pele com sabão em um banheiro de corredor. Que deixasse lá fora os sapatos, escovasse os dentes, as gengivas e não os beijasse na boca. Ela nunca os beijava na boca — e não era por ser puta. É porque talvez nem soubesse direito como era, a dança de línguas e lábios, acendendo com saliva as fornalhas do corpo. Eles diziam: “eu quero me proteger”. Ela gostaria de dizer que isso tudo era uma grande ironia. O que há para proteger em um mundo em que não é possível beijar?

⠀⠀⠀⠀⠀Ainda era possível tocá-la com as mãos em luvas de borracha, entretanto. Ainda era possível bater e apanhar, ganhar uma chupada envolta em plástico, eram tão desacostumados com a pele que duravam um tempo mínimo, quase nada. Quando terminavam, as calças arriadas, corriam logo para o banheiro, desinfetavam o corpo trêmulo em água escaldante, mandavam-na embora com o dinheiro esterilizado em um saco de papel, sem a dignidade de um diálogo. Os homens eram todos uns covardes, mas ela ainda sentia falta.  ⠀⠀⠀⠀⠀Estava cheia das porqueiras da rua que não mereciam nem um abraço, é verdade, mas ignoravam que ela talvez também esperasse por uma despedida afetuosa, um carinho meio macio que se pode fazer com as palavras. Não a viam como ser humano, e nem sabiam ser humanos. Estavam todos meio perdidos, meio apavorados.  ⠀⠀⠀⠀⠀Vingava-se quando saía com a cabeça rebentando ao sol e o vento lambendo as vistas, faziam dias tão bonitos agora que as ruas estavam vazias, era uma coisa linda, linda; mas eles eram privilegiados que não podiam ver.  ⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀Quando atendeu Romero, achou que seria assim, mais uma visita programada para acabar rápido, entretanto ele não pediu que ela se desinfetasse ao entrar na cobertura de vidro, nem estava interessado em sexo blindado. Era um homem maduro, para não dizer velho.  ⠀⠀⠀⠀⠀“Quantos anos você acha que eu tenho, Viviane?”, ele perguntou no primeiro encontro, servindo-lhe vinho bom em taças de cristal enquanto apreciavam Brasília lá de cima, silenciosa e seca como se não fosse tão perigosa.  ⠀⠀⠀⠀⠀“Uns... cinquenta?” ⠀⠀⠀⠀⠀“Quase. Quarenta e cinco.” ⠀⠀⠀⠀⠀Era mais do que o dobro do que ela já tinha vivido, portanto bebericou o vinho, dando de ombros porque estava certa. Ele era velho. Ele se lembrava.  ⠀⠀⠀⠀⠀“É verdade. Eu me lembro. E é meio triste se lembrar de uma vida que não vai mais acontecer”, confessou, quando os pensamentos da menina escapuliram.  ⠀⠀⠀⠀⠀Ela não tinha pena, não desses pássaros engaiolados e ricos que viviam no topo de colinas de aço, saudáveis e vivos, sobretudo porque conhecia os ratos. Ratos como ela, que eram obrigados a sair para a rua e podiam, a qualquer momento, cair doentes.  ⠀⠀⠀⠀⠀Romero queria conversar, mas o atendimento virtual não era suficiente, as garotas eram boas, ele confessou, entretanto sentia falta de olhar nos olhos de alguém sem uma tela no meio.  ⠀⠀⠀⠀⠀“É uma coisa que ninguém dá muito valor. O peso de um olho no outro.” ⠀⠀⠀⠀⠀Viviane achou aquilo tudo muito poético e quis guardar para anotar no caderninho onde escrevia seus pensamentos para a posteridade, ciente de que também seria abatida a qualquer momento e a febre faria escorrer sua existência pelo mesmo esgoto de onde tinha surgido. Quem sabe a nova civilização que aparecer, quando descobrirem a cura, me encontre, pensava. Quem sabe ela conseguisse se revelar para essas pessoas do futuro. Eu existi. Eu estive aqui. ⠀⠀⠀⠀⠀Romero queria uma fatia da sua aventura. Queria viver pela vida dela. Então pedia que contasse como era desbravar as ruas como se não existisse um inimigo invisível. Ficava respeitosamente silencioso, enquanto ela contava. Do Parque da Cidade tomado por mato; das pontes tombadas pela água; e os passarinhos que vinham buscar comida em sua mão apenas porque era tão raro aparecer alguém. Vez ou outra você via uma pessoa, caminhando dentro de macacões emborrachados feito invasores de uma cidade radioativa.  ⠀⠀⠀⠀⠀“Você não tem medo?”, Romero sussurrava.  ⠀⠀⠀⠀⠀“Todo dia. Mas eu não posso me dar ao luxo de esperar passar.” ⠀⠀⠀⠀⠀ Ele a admirava. E ela se envaidecia, tanto que voltou para outros encontros, que sempre transcorriam no ambiente asséptico da cozinha, separados pela distância de um balcão. “O que você fez hoje?”, ele perguntava, enquanto preparava espaguete ao sugo e separava vinhos de sabor amadeirado. E ela ia contando sobre suas aventuras e pequenas amizades: o sanduíche de atum dividido com um porteiro amistoso, a perseguição a um cachorro perdido na W3 Sul, o grotesco de uma mulher tomando sol pendurada na janela (é tão engraçado quanto ver uma lesma sufocada de sal). Às vezes Romero parava o que estava fazendo para escutá-la de cabeça baixa, e ela nunca sabia se ele estava muito triste ou apenas levemente comovido.  ⠀⠀⠀⠀⠀Ela sentia nele a tristeza e o cansaço, porque eram tempos de tristeza e cansaço, e um dia disse que achava que ele era diferente. ⠀⠀⠀⠀⠀“Diferente como?” ⠀⠀⠀⠀⠀“Você não tem o mesmo medo de mim que os outros.” ⠀⠀⠀⠀⠀“É porque eu já vivi demais, como você diz.” ⠀⠀⠀⠀⠀“Então por que não se arrisca? Por que não vem comigo dar uma volta?” ⠀⠀⠀⠀⠀Ele a olhou profundamente, não como se estivesse louca, mas como se estivesse sendo leviana. Como se a mera sugestão fosse um horror.  ⠀⠀⠀⠀⠀“Acho que eu tenho medo do lado de fora, afinal”, espantou o incômodo, com um sorriso forçado. “Nem todo mundo é como você, minha pequena camicase.” ⠀⠀⠀⠀⠀Como todos os homens que ela visitava em suas prisões, ele não queria perder o controle. Perto dele, no entanto, sentia algo diferente. Uma espécie de comichão no umbigo, uma quentura meio borbulhante que fazia amolecer os ossos. Via a si mesma vagando pelos endereços de suas visitas com os olhos colados ao celular, esperando a ligação, vivendo pela expectativa daquela companhia. Uma noite, sonhou que ele a abraçava. ⠀⠀⠀⠀⠀Em outra, sonhou que ele a beijava na boca.  ⠀⠀⠀⠀⠀“Acho que eu posso estar me apaixonando por você”, disse, assim de pronto, surpreendendo-o com um corte rápido na conversa. ⠀⠀⠀⠀⠀Ele estacou, o rosto ensopado de espanto.  ⠀⠀⠀⠀⠀“Acho que não é uma boa continuar vindo aqui”, ela emendou, para aliviá-lo um pouco. “Vou parar.” ⠀⠀⠀⠀⠀“O que você quer que eu faça?”, a voz dele era um sussurro pálido, e veio pelo menos três minutos depois do silêncio. ⠀⠀⠀⠀⠀Mais um covarde, mais um covarde. ⠀⠀⠀⠀⠀“Abre a porta.” ⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀Em seus sonhos, ele não abre. Em seus sonhos, ele sequer a deixa ir. Ele a abraça e a beija, ele pede que ela fique e que espere com ele. Mas essa era a vida que estava a caminho de acabar. Essa era a realidade. Ela não vai de elevador. Ela vai de escadas. Lá fora, o céu está ridiculamente azul e, enquanto se afasta, lembra que o prédio dele tem a altura das nuvens. Você pode ter saudades até das pessoas que te decepcionam, escreve no caderninho, a caminho de casa, no mesmo metrô fantasma de sempre. ⠀⠀⠀⠀⠀“O que você está escrevendo?”, alguém pergunta.  ⠀⠀⠀⠀⠀“Um diário”, responde sem pensar, nem erguer a cabeça. “Para encontrarem quando eu morrer.” ⠀⠀⠀⠀⠀“Legal, tipo uma mensagem para o futuro?” ⠀⠀⠀⠀⠀Ele é um desses músicos de janela, percebe, quando finalmente levanta a cabeça. Traz nas costas um violão e uma pequena caixa de som com alças de couro. Um rato que faz serenatas. ⠀⠀⠀⠀⠀“É, tipo isso”, responde, enquanto ele larga os pertences no banco e se senta sem pedir permissão. A perna dele encosta levemente na sua. Consegue sentir o calor atravessando a roupa. Ficam em silêncio enquanto o metrô segue seu curso, engolindo as entranhas da cidade. Lado a lado.

 

Nascida em 1991 em Planaltina de Goiás,Fabiane Guimarães trabalha com comunicação e direitos humanos no Fundo de População das Nações Unidas, e criou cedo o gosto pela leitura. Seu primeiro romance, Apague a luz se for chorar, será publicado em 2021 pelo seloAlfaguara.




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