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Conte com a gente... especial autores negros.

Você na América

Chimamanda Ngozi Adichie


Tradução: Tomaz Amorim Izabel

Você achava que todo mundo na América tinha um carro e uma arma. Seus tios e tias e primos achavam também. Logo depois que você ganhou na loteria do visto americano, eles te disseram: “Em um mês você terá um carrão. Em breve, um casarão. Mas não compre uma arma como aqueles americanos”.

Eles marcharam para dentro do barraco na favela em Lagos, ficando de pé do lado das paredes de zinco cravejadas de pregos porque as cadeiras não davam para todo mundo, para dar tchau com vozes altas e te dizerem com vozes baixas o que eles queriam que você mandasse para eles. Em comparação com o carrão e o casarão (e possivelmente a arma), as coisas que eles queriam era menores: bolsas e sapatos e suplementos vitamínicos. Você disse tudo bem, sem problemas.

Seu tio na América disse que você poderia viver com ele até conseguir se virar. Ele te buscou no aeroporto e te comprou um grande cachorro quente com mostarda amarela que te deixou enjoada. Apresentando a América, ele disse com um sorriso. Ele vivia em uma pequena cidade de brancos em Maine, em uma casa de trinta anos junto ao lago. Ele te disse que a companhia para a qual ele trabalhava tinha oferecido a ele alguns milhares a mais junto com ações porque eles estavam tentando desesperadamente ter mais diversidade. Eles incluíam ele em todos os folhetos, até naqueles que não tinham nada a ver com engenharia. Ele ria e dizia que o trabalho era bom, que valia a pena morar em uma cidade toda de brancos mesmo que sua esposa tivesse que dirigir por uma hora até encontrar um salão de cabeleireiro que trabalhasse com cabelos negros. O truque era entender a América, saber que na América era dar e receber. Você abria mão de muito, mas ganhava muito também.

Ele te mostrou como se candidatar para uma vaga de caixa no posto de gasolina da rua principal e te inscreveu em uma faculdade comunitária onde as meninas ficaram curiosas com o seu cabelo. Ele fica para cima ou para baixo quando você tira as tranças? Ele fica todo para cima? Como? Por que? Você usa pente?

Você dava um sorriso cerrado quando elas perguntavam essas coisas. Seu tio disse para você esperar por isso: uma mistura de ignorância e arrogância, ele chamou assim. Então ele te contou que os vizinhos disseram, poucos meses depois que ele se mudou para a casa dele, que os esquilos tinham começado a desaparecer. Eles tinham ouvido que os africanos comem todo o tipo de animais selvagens.

Você riu com seu tio e sentiu que a casa dele era um lar, a esposa dele te chamava de nwanne – irmã – e os dois filhos dele em idade escolar te chamavam de Titia. Eles falavam igbo e comiam garri no almoço e era como um lar. Até que seu tio entrou no porão estreito onde você dormia com velhos baús e rodas e livros e agarrou os seus seios, como se ele estivesse colhendo mangas de uma árvore, gemendo. Ele não era mesmo seu tio, ele era na verdade um primo distante do marido da sua tia, não parente de sangue.

Enquanto você fazia suas malas naquela noite, ele sentou na sua cama – era a casa dele afinal – e riu e disse que você não tinha para onde ir. Se você deixasse, ele faria muitas coisas por você. Mulheres inteligentes faziam isso o tempo inteiro. Como você acha que aquelas mulheres lá em Lagos com trabalhos que pagam bem conseguiram? Ou mesmo as mulheres em Nova Iorque?

Você se trancou no banheiro e na manhã seguinte você partiu, caminhando no vento pela longa estrada, cheirando os bebês-peixe no lago. Você viu ele passar dirigindo, ele sempre te deixava na Rua Principal, e ele não buzinou. Você se perguntou o que ele iria dizer para a sua esposa, por que você tinha partido. E você se lembrou do que ele disse, que a América era dar e receber.

Você acabou em Connecticut, numa outra cidade pequena, porque era o ponto final do ônibus Bonanza em que você subiu. Bonanza era o ônibus mais barato. Você entrou em um restaurante por perto e disse que trabalharia por dois dólares menos que as outras garçonetes. O dono, Juan, tinha um cabelo pintado de preto e sorriu mostrando um brilhante dente amarelo. Ele disse que nunca tinha tido uma empregada nigeriana, mas que todos os imigrantes trabalhavam duro. Ele sabia, já tinha passado por isso. Ele te pagaria um dólar a menos, mas por debaixo dos panos. Ele não gostava de todos os impostos que eles estavam fazendo ele pagar.

Você não tinha condições de pagar uma escola, porque agora você pagava aluguel pelo pequeno quarto com o carpete manchado. Além disso, a cidadezinha de Connecticut não tinha uma faculdade comunitária e o empréstimo para a Universidade Estadual custava muito. Então você ia para a Biblioteca Pública, você procurava pelas ementas dos cursos nos sites das escolas e lia alguns dos livros. Às vezes você se sentava no colchão esburacado da sua cama de solteiro e pensava sobre seu lar.

Seus pais, seus tios e tias, seus primos, seus amigos. As pessoas que nunca tinham conseguido lucrar com as mangas e akara dos quais eles cuidavam, cujas casas – folhas de zinco precariamente presas por pregos – desmontavam durante a temporada de chuvas. As pessoas que vieram dizer tchau, que se alegraram porque você ganhou a loteria do visto americano, para confessar a sua inveja. As pessoas que mandavam seus filhos para o colegial em que os professores davam um A quando alguém lhes passava envelopes marrons.

Você nunca precisou pagar por um A, nunca passou um envelope marrom para um professor no colegial. Mesmo assim, você escolheu envelopes marrons compridos para mandar metade do que você recebia para os seus pais. As notas que o Juan te dava eram mais amassadas do que as de gorjeta. Todo mês. Você não escrevia nenhuma carta. Não tinha nada sobre o que escrever.

Nas primeiras semanas, no entanto, você queria escrever, porque você tinha histórias para contar. Você queria escrever sobre a abertura surpreendente das pessoas na América, o quão avidamente as pessoas te contavam sobre as mães delas lutando contra o câncer, sobre o parto prematuro da cunhada delas – coisas que as pessoas deveriam esconder, revelar apenas para membros da família que as queriam bem. Você queria escrever sobre a maneira com que as pessoas deixavam tanta comida nos seus pratos e enfiavam algumas notas de dólar embaixo, como se fosse uma oferenda, uma expiação pela comida desperdiçada. Você queria escrever sobre a criança que começou a chorar e a puxar os cabelos loiros e em vez de os pais fazerem ela se calar, eles suplicaram para ela e então todos se levantaram e saíram.

Você queria escrever que nem todo mundo na América tinha um casarão ou um carrão, você só não tinha ainda certeza sobre as armas porque eles poderiam tê-las dentro de suas bolsas e bolsos.

Não era só para os seus pais que você queria escrever, mas para os seus amigos e primos e tias e tios. Mas você nunca teria condições de comprar tantas bolsas e tênis e suplementos vitamínicos por aí e ainda pagar seu aluguel, então você não escrevia para ninguém.

Ninguém sabia onde você estava porque você não contou para ninguém. Às vezes você se sentia invisível e tentava atravessar a parede do seu quarto para o corredor e quando você batia contra a parede ficavam marcas nos seus braços. Uma vez, o Juan te perguntou se você tinha um homem que batia em você porque ele iria dar um jeito nele e você riu um riso misterioso. Em algumas noites, alguma coisa se enrolava em volta do seu pescoço, alguma coisa que sempre quase te enforcava antes de você acordar.

Algumas pessoas pensavam que você era da Jamaica porque eles pensavam que todas as pessoas negras com um sotaque eram jamaicanas. Ou alguns que adivinhavam que você era africana perguntavam se você conhecia tal ou tal pessoa do Quênia ou tal ou tal pessoa do Zimbábue porque eles pensavam que a África era um país onde todo mundo conhecia todo mundo.

Então, quando ele te perguntou, no escuro do restaurante depois que você recitou os pratos do dia, de qual país africano você era, você disse Nigéria e esperou que ele perguntasse se você conhecia um amigo que ele tinha feito no Peace Corps no Senegal ou em Botsuana. Mas ele perguntou se você era yorubá ou igbo porque você não tinha um rosto de fulani. Você ficou surpresa – você pensou, ele deve ser um professor de antropologia, um pouco jovem mas sei lá? Igbo, você disse. Ele perguntou seu nome e disse que Akunna era bonito. Ele não perguntou o que significava, felizmente, porque você estava cansada de como as pessoas diziam: – Fortuna do Pai? Você quer dizer, tipo, que seu pai vai realmente te vender para um marido?

Ele tinha ido para Gana e Quênia e Tanzânia, ele tinha lido tudo sobre os outros países africanos, suas histórias, suas complexidades. Você queria sentir desdém, mostrá-lo

ao trazer o pedido dele, porque pessoas brancas que gostavam demais da África e que gostavam de menos da África eram o mesmo: condescendentes.

Mas ele não agia como se soubesse demais, não balançava sua cabeça de um jeito superior como o professor lá da Faculdade Comunitária fez uma vez enquanto falava sobre Angola, não mostrou nenhuma condescendência. Ele entrou no dia seguinte e se sentou na mesma mesa e quando você perguntou se o frango estava bom, ele te perguntou algo sobre Lagos. Ele entrou no segundo dia e falou por tanto tempo – te perguntando com frequência se você não achava que Mobutu e Idi Amim eram parecidos – que você teve que dizer para ele que isto era contra as regras do restaurante. Ele acariciou sua mão quando você colocou o café na mesa. No terceiro dia, você disse ao Juan que não queria mais aquela mesa.

Depois do seu turno naquele dia, ele estava te esperando do lado de fora, apoiado num poste, te pedindo para sair com ele porque seu nome rimava com hakuna matata e O Rei Leão era o único filme melodramático de que ele gostava. Você não sabia o que era O Rei Leão. Você olhou para ele na luz forte e percebeu que os olhos dele eram da cor do azeite de oliva extra-virgem, um ouro esverdeado. Azeite de oliva extra-virgem era a única coisa de que você gostava, realmente gostava, na América.

Ele era estudante na Universidade Estadual. Ele te disse quantos anos tinha e você perguntou porque ele não tinha se graduado ainda. Era a América, afinal, não era como lá em casa em que as universidades fechavam com tanta frequência que as pessoas adicionavam três anos a mais nos seus planos de estudo e as aulas entravam em greve depois de greve e ainda não eram pagas. Ele disse que ficou algum tempo fora, alguns anos depois do colégio, para se descobrir e viajar, principalmente através da África e da Ásia. Você perguntou onde é que ele tinha finalmente se encontrado e ele riu. Você não riu. Você não sabia que as pessoas podiam simplesmente escolher não ir para a escola, que as pessoas podiam ditar para a vida. Você estava acostumada a aceitar o que a vida dava, a escrever o que a vida ditava.

Você disse não nos três dias seguintes sobre isso sair com ele, porque você não achava certo, porque você ficava desconfortável com a maneira com que ele olhava nos seus olhos, a maneira com que você ria tão facilmente do que ele dizia. E então na quarta noite você entrou em pânico quando viu que ele não estava esperando na porta, depois do seu turno. Você rezou pela primeira vez em muito tempo e quando ele apareceu por trás de você e disse, ei, você disse, sim, você sairia com ele, mesmo antes de ele perguntar. Você tinha medo de que ele não perguntaria de novo.

No próximo dia, ele te levou ao Chang’s e o seu bolinho da sorte veio com duas fitinhas de papel. As duas estavam em branco.

~

Você soube que você ficou confortável quando você contou para ele a verdadeira razão pela qual você pediu outra mesa para o Juan – Jeopardy! Quando você assistia Jeopardy na TV do restaurante, você torcia para os seguintes, nesta ordem: mulheres de cor, mulheres brancas, homens negros e, finalmente, homens brancos, o que significava que você nunca torcia para homens brancos. Ele riu e disse que estava costumado a não ter torcida, porque sua mãe ensinava Estudos Feministas.

E você soube que vocês tinham ficado próximos quando você disse para ele que o seu pai na verdade não era professor de escola em Lagos, mas motorista de taxi. E você contou para ele sobre aquele dia no trânsito em Lagos no carro do seu pai, estava chovendo e a sua poltrona estava molhada por causa do furo comido de ferrugem no teto. O trânsito estava pesado,o trânsito estava sempre pesado em Lagos, e quando chovia era um caos. As estradas eram tão mal drenadas que alguns carros ficavam presos em buracos de lama e alguns dos seus primos ganhavam dinheiro rebocando os carros. A chuva e a estrada pantanosa – você pensava – fizeram com que seu pai pisasse nos freios tarde demais naquele dia. Você ouviu o barulho antes de senti-lo. O carro contra o qual o seu pai colidiu era grande, estrangeiro e verde escuro, com faróis amarelos como os olhos de um gato. Seu pai começou a chorar e implorar antes mesmo de sair do carro e se deitou inteiro na estrada, parando o trânsito. Desculpa, senhor, desculpa senhor, se você vender minha família e eu, mesmo assim você não vai conseguir comprar nem uma roda para o seu carro, ele cantou. Desculpa, senhor.

O homem grande sentado no banco de trás não saiu. Seu motorista, sim, examinando os danos, olhando para a figura esparramada do seu pai com o canto do olho, como se a súplica fosse uma canção de que ele estava envergonhado de admitir que gostava. Finalmente, ele deixou seu pai ir. Gesticulou para que ele saísse. Os outros carros buzinavam e os motoristas xingavam. Quando seu pai voltou para dentro do carro, você se recusou a olhar para ele porque ele estava como os porcos que chafurdavam nos brejos perto do mercado. Seu pai parecia nsi. Merda.

Depois que você contou isso para ele, ele franziu os lábios e segurou a sua mão e disse que entendia. Você soltou sua mão, incomodada, porque ele achava que o mundo era, ou deveria ser, cheio de gente como ele. Você disse para ele que não tinha nada para entender, era só como as coisas eram.

~

Ele não comia carne porque achava que era errada a forma com que eles matavam os animais. Ele disse que eles liberavam toxinas do medo nos animais e que toxinas do medo te deixavam paranóico. Lá em casa, os pedaços de carne que você comia, quando tinha carne, eram do tamanho da metade do seu dedo. Mas você não contou isso para ele. Você também não contou que os cubos de dawadawa com que sua mãe cozinhava tudo, porque curry e tomilho eram muito caros, tinham glutamato monossódico, eram glutamato monossódico. Ele disse que glutamato causava câncer e que era por isso que ele gostava do Chang’s – o Chang não cozinhava com glutamato.

Uma vez, no Chang, ele disse ao garçom que viveu em Xangai por um ano, que falava um pouco de mandarim. O garçom se alegrou e disse para ele qual sopa estava melhor e então perguntou a ele: “Você tem uma namorada em Xangai?”. E ele sorriu e não disse nada.

Você perdeu seu apetite, a região abaixo dos seus seios pareceu entupida por dentro. Naquela noite, você não gemeu quando ele estava dentro de você, você mordeu seus lábios e fingiu que não gozou porque você sabia que ele se preocuparia. Finalmente você disse para ele porque estava chateada, porque o homem chinês pressupôs que você nunca poderia ser a namorada dele, e ele sorriu e não disse nada.

Antes de se desculpar, ele te olhou com os olhos vazios e você soube que ele não entendeu.

~

Ele te comprava presentes e quando você se opôs por causa do preço, ele disse que tinha uma poupança, que estava tudo bem. Os presentes dele te enfeitiçavam. Uma bola do tamanho de um punho que você balançava para assistir à neve cair sobre uma casinha, ou uma bailarina de plástico vestida de rosa girando sobre um palquinho. Uma pedra brilhante. Um lenço mexicano caro pintado à mão que você nunca ia poder usar por causa da cor. Finalmente, você disse para ele que os presentes do Terceiro Mundo eram sempre úteis. A pedra, por exemplo, funcionaria se você conseguisse esmagar coisas com ela, ou usá-la no corpo. Ele riu alta e longamente, mas você não riu. Você percebeu que na vida dele, ele podia comprar presentes que eram apenas presentes e nada mais, nada útil. Quando ele começou a te comprar sapatos e roupas e livros, você pediu para ele que não, você não queria nenhum presente.

Mesmo assim, você não brigaram. Não de verdade. Vocês discutiam e aí se reconciliavam e faziam amor e passavam as mãos pelos cabelos um do outro, o dele macio e amarelo como as bandeiras dançantes do milho crescendo, o seu escuro e volúvel como o enchimento de um travesseiro. Você se sentiu segura nos braços dele, a mesma segurança que você sentia lá em casa, no barraco de zinco na favela.

Quando ele tomava sol demais e a pele dele ficava da cor de uma melancia madura, você beijava partes das costas dele antes de aplicar a loção devagarinho. Era mais íntimo do que o sexo. Você se sentia envolvida, ainda assim, era uma experiência que vocês dois nunca poderiam compartilhar. Você se escurecia no sol, mas era escura demais para se queimar algum dia.

Ele achou a loja africana nas páginas amarelas de Hartford e dirigiu com você até lá. O dono da loja, um ganês, perguntou a ele se ele era africano, como os quenianos e sul-africanos brancos, e ele riu e disse que sim, mas que estava na América por bastante tempo, que sentia saudades da comida da sua infância. Você cozinhou para ele, ele gostou do arroz jollof mas depois que comeu o garri e a sopa onugbu ele vomitou na sua pia. Você não se importou porque agora você podia cozinhar sopa de onugbu com carne.

A coisa que se enrolava no seu pescoço, que quase sempre te enforcava antes de você dormir, começou a afrouxar, a se soltar.

~

Você sabia pelas reações das pessoas que vocês eram anormais – a maneira com que os ruins eram ruins demais e os gentis, gentis demais. A maneira com que as velhas mulheres brancas murmuravam e encaravam ele, os homens negros que balançavam suas cabeças para você, as mulheres negras, cujos olhos piedosos lamentavam sua falta de auto-estima, sua auto-aversão. Ou as mulheres negras que sorriam rapidamente, sorrisos secretos de solidariedade, os homens negros que se esforçavam demais para te perdoar, diziam um oi óbvio demais para ele, as mulheres brancas que diziam: “que casal bonito”, muito claramente, muito alto, como se estivessem tentando provar para si mesmas sua tolerância.

Você não disse para ele, mas você desejava ter uma pele mais clara porque assim eles não ficariam olhando tanto. Você pensou na sua irmã lá em casa, sobre a pele cor-de-mel dela, e você queria ter saído como ela. Você quis isso de novo na noite em que conheceu os pais dele. Mas você não disse para ele, porque ele te olharia solene e seguraria sua mão e te diria que foi a cor lustrosa da sua pele que chamou a atenção dele primeiro. Você não queria que ele segurasse a sua mão e dissesse que entendia porque, de novo, não tinha nada para ser entendido, era assim que as coisas eram.

Você desejava ter a pele clara o bastante para ser confundida como uma porto-riquenha, clara o bastante para que, na meia-luz do restaurante indiano onde vocês compartilhavam samosas com os pais dele de uma bandeja colocada no centro, você quase se parecesse com eles.

A mãe dele te disse que amava as suas tranças, te perguntou se os búzios presos nelas eram de verdade e quais escritores mulheres você lia. O pai dele perguntou o quão parecida era a comida indiana com a comida nigeriana e brincou com você sobre pagar quando a conta chegou. Você olhou para eles e se sentiu grata por eles não terem te examinado como um troféu exótico, uma presa de marfim.

A mãe dele te disse que ele nunca tinha trazido uma moça para eles conhecerem, com exceção do par na festa de formatura do colégio e ele sorriu tenso e segurou sua mão. A toalha de mesa escondia as suas mãos entrelaçadas. Ele apertou sua mão e você apertou de volta e se perguntou porque ele estava tão tenso, por que os seus olhos de azeite extra-virgem se escureciam quando ele falava com os pais. Ele te falou depois sobre os problemas dele com os pais, como eles repartiam o amor como um bolo de aniversário, como eles dariam um pedaço maior se ele fosse para a Faculdade de Direito. Você queria ser compreensiva. Mas ao invés disso ficou irritada.

Você ficou mais irritada quando ele te disse que ele tinha se recusado a ir para o Canadá com eles por uma semana ou duas, para a cabana de verão no interior de Quebec. Eles tinham até pedido para ele te levar. Ele te mostrou fotos da cabana e você se perguntou o porquê de ela se chamar cabana, porque os prédios tão grandes quanto aquele, perto da sua vizinhança lá em casa, eram bancos e igrejas. Você derrubou um copo e ele se despedaçou na madeira de lei do chão do apartamento dele e ele perguntou o que é que estava errado e você não disse nada, embora você pensasse que havia muita coisa errada. Os seus mundos estavam errados.

Depois, no chuveiro, você começou a chorar, você via a água diluir suas lágrimas e você não sabia porque estava chorando.

~

Você finalmente escreveu para casa, quando a coisa em volta do seu pescoço tinha quase completamente ido embora. Uma carta curta para os seus pais e irmãos e irmãs, enfiada entre as notas de dólares amassadas, e você incluiu seu endereço. Você recebeu uma carta poucos dias depois, por correio expresso. Sua mãe mesma escreveu a carta, você soube pela caligrafia aracnídea, pelos erros de ortografia.

Seu pai tinha morrido, ele desabou por cima do volante do taxi dele. Cinco meses agora, ela escreveu. Eles tinham usado parte do dinheiro que você mandou para dar um bom funeral a ele. Eles mataram uma cabra para os convidados e o enterraram em um caixão de verdade, não só com tábuas de madeira.

Você se enrolou na cama, apertou com força seus joelhos no peito e chorou. Ele te segurou enquanto você chorava, alisou seu cabelo e se ofereceu para ir junto com você, de volta para casa na Nigéria. Você disse que não, você precisava ir sozinha. Ele perguntou se você voltaria e te lembrou que você tinha um visto permanente e que você o perderia se não voltasse em um ano. Ele disse que você sabia o que ele estava querendo dizer, você iria voltar, volta?

Você se virou e não disse nada e ele dirigiu com você até o aeroporto, você abraçou ele firme, agarrando os músculos das costas dele até suas costelas doerem. E você disse obrigada.



Chimamanda Ngozi Adichie

Nasceu em Enugu em 15 de setembro de 1977. É uma feminista e escritora nigeriana, reconhecida como uma das mais importantes jovens autoras anglófonas de sucesso, atraindo uma nova geração de leitores de literatura africana.

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