Farrina
Cidinha da Silva
Era, de longe, a mulher mais alta de quem já havia me aproximado. Estava sentada na recepção do museu de um jeito bem infantil, as pernas muito abertas e o tronco inclinado e projetado para frente, como um menino aficionado por videogame.
Só mudava a postura para manusear o celular. Ali denunciava a idade, a geração, era pré-histórica. Catava milho para digitar qualquer coisa. Apertava as teclas com o indicador. Mordia o lábio de felicidade quando concluía uma frase ou acertava uma letra maiúscula, e tocava a tela com aquele jeito de quem ainda se encanta com o milagre das imagens no touchscreen.
Assim que me viu, sorriu meneou o corpo como quem dissesse: se você está procurando lugar para se sentar, sente-se aqui. Assenti. A ver o que aquela mulher de longos dreads avermelhados teria a me dizer. Dreads criam certa irmandade mundo afora entre pessoas negras que partilham o sentido de raízes que crescem para o alto e para fora, derramam-se pelos ombros e costas, totalmente expostas ao sol. Sentei a seu lado e a cumprimentei. Avaliei que tivesse por volta de sessenta anos. Talvez mais e o tamanho agigantado lhe emprestasse um ar de adolescente desajeitada. Talvez menos e a vida tivesse sido muito dura. Era o mais provável.
Farrina era seu nome. Falamos sobre o tempo, ameaçava chover e ela fazia cálculos para a chuva cair dali a quatro horas, quando planejava já estar dentro de casa. Morava ali no Brooklyn mesmo. Perto do meu museu predileto que estava em festa. Era primeiro sábado do mês, dia de entrada gratuita para celebrar a herança negra durante todo o dia. Conversamos sobre a possível origem do grupo musical que se apresentaria em breve. No teste de som o canto era rascante, de audível influência árabe. Eu apostei no Norte da África, ela em New York, porque ali havia gente do mundo todo. Acertei, o conjunto era marroquino. Havia um Tuareg na banda, aquele foi o mote para conversarmos sobre viagens. Ela mesma vinha de uma viagem longa. Chegara do Sul há uma semana, fugindo de mais um furacão. Eu não havia visto notícia sobre furacão algum. Ela riu o riso de quem diz: são tantos furacões e vendavais no Sul que o Norte dos EUA e o mundo só olham para nós quando precisam de notícias. Ela era precisamente de Savannah. Meu deus! Savannah! A terra daquele filme que eu não me lembrava o nome e por mímica e palavras soltas queria que ela adivinhasse. Dei várias pistas inúteis. Meu filme era cult, não pertencia ao mundo de Farrina. Mas ela se lembrou de Forrest Gump e me informou que havia sido filmado lá, em Savanah. Eu não sabia. O filme da minha memória apagada fizera muito sucesso em 1995, em Washington D.C. A essa altura ela ainda não morava em New York, me avisou.
Não pude me furtar de olhar para as marcas do tempo violento e da pobreza em seu corpo: as cáries, a falta de dentes, cortes e pequenas queimaduras ao longo dos braços, a pele ressecada, sem uso de hidratante naquele princípio de inverno.
Quando você se mudou para New York? Nos anos 1980, ela respondeu. Depois fora para Savannah e sua família se mantivera lá, no Brooklyn. Estranhei, talvez por desconhecimento dos fluxos migratórios estadunidenses. Quis perguntar o que a havia levado para o Sul, mas avaliei que não tínhamos intimidade para tanto. Resolvi esperar para ver se ela fazia alguma revelação forte, um grande amor, uma volta às raízes negras e agrárias do país, sei lá. Militante antirracista ela não me parecia ser. Farrina se levantou para tirar fotos e achei que se eu ficasse de pé minha cabeça encostaria na cintura dela. É lógico que foi uma especulação exagerada, porque ela precisaria medir três metros. Na real deveria ter 1,92, no máximo 1,95, não chegava a dois metros. Mas não deixava de ser gigante, comparada a mim. Voltou a sentar-se e mexeu no celular, divulgava fotos, aquele exercício comum de publicizar a intimidade que deixa as pessoas viciadas. Fiquei especulando de que povo africano ela descenderia. Nada concluí. Quando finalizou a organização das fotos retomamos a conversa sobre o furacão. Eles avisaram que a gente deveria deixar as casas dois dias antes do furacão chegar. A instrução era para fechar tudo e sair. Interessada, perguntei se o governo local dava alguma ajuda financeira para que os moradores se deslocassem. Muito séria, respondeu que não. Nenhuma ajuda. Recebiam, sim, uma notificação de que se não abandonassem as casas e algo lhes acontecesse, seriam multados posteriormente. Como ela tinha parentes em New York dirigiu até lá e esperava boas condições climáticas para voltar e ver o que havia se dado com a casa. Nessa hora o olhar dela ficou bem triste, mesmo que tivesse rido para reforçar a ironia do reencontro com a casa, possivelmente um imóvel público, cedido pelo governo. Eu não sabia como continuar a conversa, mas Farrina queria ser ouvida e me falou sobre os filhos, dois rapazes. O mais novo estudara numa universidade local, mas abandonou o curso, queria trabalhar, ter o próprio dinheiro e montou um negócio de consertar computadores. O mais velho era professor. Não perguntei de quê. Queria mesmo saber mais sobre ela, com o que trabalhava, por exemplo. Devia ser cozinheira ou manejar maçaricos elétricos, coisas que produzem calor, faíscas e queimam, acidentalmente. Seus braços e mãos eram muito marcados.
Farrina me perguntou se eu era de New York. Eu ri, porque aquilo só podia ser pergunta de quem estava se conhecendo mesmo. Sou brasileira e contei isso a ela, que se espantou, oh, Brasil e fez alguma referência a Salvador e ao Rio de Janeiro, onde tinha acontecido a Olimpíada. Tentei explicar que eu era de Minas Gerais, desenhei um mapa rudimentar do Brasil e localizei a terrinha. Depois perguntou o que fazia em NY e respondi que estava ali para assistir a leitura de uma peça de minha autoria num teatro da cidade. Ela me olhou entre espantada e feliz. Congratulou-se comigo e disse, é muito bom que a gente faça esse tipo de coisa também. Eu concordei: é, sim! E a convidei para assistir a leitura. Eu deixaria o nome dela na portaria, era só pegar o ingresso. Insisti para ela ir. Ela tentaria, mas não senti firmeza. Fiquei mesmo pensando se ela teria dinheiro para o metrô ou ônibus. Vi umas pessoas comendo salteñas e o estômago deu sinais de existência. Perguntei se ela aceitava algo para comer. A princípio respondeu que não e eu disse que a convidava. Então ela aceitou e recomendou que fosse um hot dog ou qualquer coisa similar. Sugeriu que eu deixasse minha mochila ao lado dela enquanto comprava a comida. Ai, uma desconhecida. Contudo já havia uma irmandade dreadlockiana instalada. Peguei a carteira e deixei a bolsa com o passaporte dentro. Segui o cheiro dos petiscos com o coração apertado.
Chegando à barraca de comida não se tratava de salteña, mas sim de um pastelzinho caribenho com recheio de carne de boi, única opção. Comprei apenas um para Farrina e voltei correndo para nosso local de conversa. Ela ainda estava lá, envolvida com o celular. Entreguei o pastel a ela que agradeceu e perguntou pelo meu. Expliquei que eu não comia carne vermelha. Ela lamentou e disse que eu deveria pelo menos beber uma Soda. Pensei que era uma indireta, porque comprei só um negócio para comer e nada para beber, cabeça de taurina, me levantei perguntando se queria a Soda, podia buscar. Ela segurou meu braço dizendo que não. Seria para mim mesma, para não ficar com a boca seca. Acreditei, tirei uma maçã da bolsa e comi para fazer-lhe companhia.
Farrina saboreava o pastel e eu já me corroía de remorso pensando que deveria ter comprado mais de um, até que ela comentou: sim, esse Patty é do Caribe. Eu sou de lá. Mais uma surpresa. De onde você é no Caribe? De Trinidad. Oh, Trinidad e Tobago, ilha da região familiar de Audré Lord! Ela não conhecia. Expliquei que era uma escritora muito importante, ativista lésbica. Confesso que falei a palavra lésbica bem rápido, pois estava em dúvida se Farrina era uma dona de casa, cis, bem conservadora, ou uma lésbica antiga que guarda tudo sobre si muito bem guardado e quem é do meio que leia os códigos e os interprete. Farrina era uma cebola, isso sim.
Então ela era caribenha, chegara a NY e inadaptada à cidade mudara-se para o Sul dos EUA. Essa foi a narrativa construída por mim para que suas escolhas fizessem sentido. Antes de findar o show, Farrina me comunicou que iria embora. Sugeri que esperasse o término, faltava pouco. Ela foi incisiva, precisava partir antes da chuva. Farrina se foi e quedei pensando, que personagem! Lembrei o nome do filme: Daugthers of the Dust. Enquanto ela andava com aquelas roupas gastas, aqueles tênis rotos, aquela pele tão maltratada, eu me perguntava se a tal casa dos parentes no Brooklyn existia de verdade. No Sul, mais um furacão passava e deixava intacta a política de descaso e destruição do povo negro.
Cidinha da Silva ou Maria Aparecida da Silva, nasceu em Belo Horizonte em 1967, é uma escritora brasileira. Graduou-se em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Presidiu o Geledés - Instituto da Mulher Negra e fundou o Instituto Kuanza, que promove ações de educação, ações afirmativas e articulação comunitária para a população negra.
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