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  • Foto do escritorRico

O bárbaro no volante

Disseram-me que ele tinha pacto. O carro capotou na Rodovia do Xisto, virou um monte de sucata como lata de refrigerante amassada. O motorista sobreviveu milagrosamente sem nenhum arranhão. Dizem que em meio aos destroços recebeu uma funesta visita. Ele prometeu um resto de vida de maleficências, caso fossem lhe dado mais anos. Se houve preço eu não sei. Quem testemunhou? Bem, conheço o amigo do primo terceiro e o tio do vizinho que juram que é verdade. Depois que reformou seu Escort, o transformou em arma mortal. A cores vermelha e preta na lataria eram algo realmente sugestivo. Descia a ladeira á milhão, no galeto. Tirando fina de qualquer pedestre. Quando ele apontava no começo da rua, as rodinhas de maloqueiros pelas esquinas se recolhiam. Crianças pulavam muros, coitados dos velhinhos próximos do meio-fio. A calçada nada significava se ele não simpatizasse com a pessoa. E a gargalhada macabra atrás do volante mostrava que ele não tinha amigos. Pulava os bueiros com gosto, as lombadas com raiva. Atrás do poste ou do ponto de ônibus eram lugares seguros. As denuncias da vizinhança de nada adiantavam. A polícia tinha mais com o que se preocupar. A sorte era dele, que rasgava as ruas da Cidade-Símbolo com o pé mais pesado que se viu. Crianças do bairro eram educadas a não falar com estranhos e tomar cuidado com o barbudo barbeiro. Andar na contra-mão dos veículos para melhor avistar o louco em seu vôo baixo. Num destes dias de terror, me arrisquei demais indo a pé até a frente do colégio perto de casa para falar com certa menina bonitinha. Recebi alguns recados e algumas cartinhas amorosas dela e fui conferir pessoalmente. Apesar da timidez, das poucas palavras, não demorou muito para acontecer nosso primeiro beijo, que foi interrompido aos berros por sua mãe surgindo furtivamente ao nosso lado. Fiquei tão surpreso com a situação que fiquei sem reação. Ela não me alcançaria na corrida, mas e a fofoca que fariam sobre isso? Corro de fantasma, de polícia, do bando inimigo, mas não de mulher com perna varizenta, sozinha e desarmada. A dona me levou de arrasto á sua casa, a uma quadra dali. Fui por obrigação. O pai chegaria ao meio-dia para almoçar e então teríamos a fatídica conversa. Poderia ser tudo uma armadilha. A moreninha marcou o encontro e poderia também ter avisado sua mãe para forçar o namoro. É difícil não se enredar nestes joguetes. Fui convidado a entrar e me acomodar no sofá da sala. Couro gelado. Ela não sentou ao meu lado, mas preferiu outra poltrona. Imaginei que ela seguraria minha mãozinha trêmula para dar-me forças neste momento tão difícil. Na minha mente ensaiei diversas teorias que explicassem como minhas calças largas e caídas eram sinônimos de pessoa idônea, honesta e trabalhadora. Nos porta-retratos na estante, reconheço aquele cavanhaque. Faltava chifre e rabo para ser pior. O pai dela era o temido O homem era perigoso para pedestres desconhecidos. Imagine o que faria com quem ameaçasse tirar seu “bebê” de casa. A janela era alta demais para pular. A porta fechada a chave. Na TV, a cada intervalo da programação anunciam a reprise de “A morte pede carona”. E eu estava ali encurralado. O chá de cadeira foi longo. Duas horas de atraso e nada do homem. Ouvi falar que todo dia ele percorre sete léguas fazendo suas maldades na direção. Não era o momento para perguntar disso. Quem sabe daqui uns anos. A mãe telefonava a cada meia hora para saber do esposo. O carro enguiçou. - O namoro de vocês não tem problema. Sei que não é para sempre Ela poderia estar falando da inconstância dos relacionamentos atuais ou de meu fim próximo com o corpo moído e estirado debaixo das rodas. Para não perder viagem, também cansada de esperar, a senhora fez suas ordenanças. Eu deveria comparecer todo domingo á tarde, apenas este horário e namorar ali no sofá frio, junto com pai e mãe. Nada de se agarrar pela rua. Passeios a cada duas semanas e apenas se acompanhado da irmã mais nova. Voltar para casa antes de escurecer. Ela aceita apenas flores e bombons como presentes. Não se deve beber, nem fumar, nem escutar música imprópria. Beijo no rosto. Sem ousadias. Para tudo pedir permissão. É claro que concordei em voz baixa, sem sequer encará-la. Menti forçosamente. Eu mal conhecia a namorada, não valeria tanto esforço. Do jeito que ela me pintou, pelos deveres e obrigações, parecia até que eu era algum bandido aliciador de menores. Esperava aquelas perguntas básicas. Nenhuma das duas quis saber nada de mim. Sequer meu nome e sobrenome. Sai ileso, sem nem se despedir direito. Correndo como o vento para não atravessar o caminho do barbudo. Fiquei duas semanas fora de circulação. Obriguei-me a ficar incomunicável dentro de casa para acabar com o rolo. Bem feito para mim, que fico de folia com essas gurias novinhas. Enquanto um cargo pesado me era dado, encontrei a danadinha pela madrugada na farra. Vi que o homem era normal. Se tivesse pacto, seu tanque de guerra não quebraria. O selvagem motorizado estaria adiantado nos fatos. Que presa seria mais fácil do que eu de mãos atadas no sofá da sala?


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