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Tininha

Já se passaram muitos verões, mas, o asco da presença dele continua desiquilibrando o espírito sossegado de Tininha. Cada vez que o vê, a memória aviva o passado. Ela tem a impressão de que ele ainda se diverte com o constrangimento inevitável dela. É óbvio que também rememora! A primeira vez que ouviu aquela respiração ofegante foi numa tarde de matinê. A tv preto e branco ligada, as crianças todas na sala, completamente mudas porque qualquer som que não viesse do aparelho seria, seguramente, repelido com urros. A tv valia o risco. Era encantamento puro, magia concentrada. Tininha sonhava com ela e o sonho era concretizado no convite, esporádico, das amigas para um trechinho de coisa qualquer. Chegou atrasada. Ficou enrolada na brincadeira e perdeu a noção do tempo e tinha a louça para lavar. A mãe não esqueceu a louça. Nunca esquecia. Sentou-se na ponta do sofá, próximo à passagem para a cozinha. Não demorou para que o estrondo da cadeira de palha, cravada no assoalho ao lado dela, fizesse-a sobressaltar. Instintivamente olhou-o nos olhos e recebeu de troco um olhar fuzilante de cólera e asco. Por um tempo parou de ouvir as vozes vindas da tv. Só ouvia o silêncio quebrado pela respiração ofegante dele. Mantinha no colo as mãos suadas, uma segura na outra para evitar qualquer movimento que pudesse ser percebido. Manteve-se ali, cuidando do compasso da própria respiração para certificar-se de que não estava sendo ouvida. A respiração compassada foi aliviando a tensão e Tininha pegou-se novamente absorta no episódio da tv, tão absorta que foi incapaz de conter um riso fugidio que quase ecoou pela sala. O quase eco fui suficiente para que aquela mão, três vezes maior que a dela, viesse voraz em direção ao seu rosto. Um anjo da guarda atento, uma pequena e súbita correção na postura e um estrondo fenomenal no batente da porta! Dona Cissa o pôs para correr, ou melhor, para “puxar a lenha picada ao invés de se portar feito doido esmurrando a casa”. Tininha ainda se pergunta o que teria acontecido se o desfecho tivesse sido diferente. Tem certeza de que, em sonhos, ele reviveu aquele momento mal medido e que, repetidas vezes, fez algum sangue escorrer entre lágrimas e gemidos de dor...

Meses mais tarde Tininha sentiu, mais uma vez, aquela respiração, ofegante e asquerosa. Brincava no quintal da dona Cissa naquele fim de tarde. Uns bichanos felpudos, cuja mãe tentava destituir do aleitamento, se atropelavam no colo dela, mordiscando uma pena em sobe e desce. Por vezes, ela deixava a pena de lado para acariciar a mancha branca da cabecinha da felina, deitada no gramado, enquanto os pequenos roubavam mais uns golinhos. Assim que se via prisioneira, a mamãe, determinada, resvalava pela grama verdinha com a chusma de crias miando atrás. Na falta das filhas por ali, dona Cissa pediu para Tininha que colocasse sobre uma das camas dois travesseiros alvíssimos, recém apanhados do varal. Lavou as mãos na água límpida que transbordava da bica e correu escada acima com aquela quentura macia envolvida num abraço. O cheiro gostoso das penas deixadas ao sol nunca lhe saiu da memória, assim como nunca lhe saiu da memória o que veio em seguida. Dispôs os travesseiros lado a lado e deu umas apalpadelas para certificar-se de que a missão estava impecável. Quando virou para sair, mãos gigantescas seguraram-na pelos pulsos e a devolveram deitada sobre a coberta macia. Tininha ficou totalmente imobilizada sob o corpo descomunal. Olhava-a sarcasticamente nos olhos enquanto movimentava o corpo estranhamente. O hálito daquela respiração ofegante provocando náuseas e raiva. Pensou “quer me matar sufocada”, já sentindo mesmo o ar rareando nos pulmões comprimidos. Gritou um “sai” o mais alto que pode. Dona Cissa ouviu o grito abafado e ralhou lá de fora, enérgica. Ele intensificou o movimento por um instante apenas, depois pulou para longe dela com um sorriso de satisfação repugnante. Com um “idiota” entre dentes, Tininha passou por ele, abrindo passagem com um empurrão. Atravessou a cozinha e desceu correndo as escadas, retomando sua posição no gramado. Respirava profundo (mais numa tentativa de desacelerar o ritmo cardíaco do que de arejar os pulmões), enquanto acariciava a pelagem negra da felina e lutava para afastar os pequenos que insistiam em sorver do leite negado. A ideia de que ele a queria matar sufocada não permitia que o coração acalmasse. Alguns anos mais tarde compreendeu que não era aquele tipo de morte a objetivada. Compreendeu, também, que este segundo momento deve ter sido rememorado ainda com mais intensidade que o primeiro. Tininha nunca teve coragem de imaginar um outro desfecho para este ocorrido, mas sabe que ele imaginou. Talvez, ainda hoje, depois de colocar o neto no berço e se recolher para mais uma noite de merecido descanso, ele ainda fantasie desfechos mais luxuriosos para aquele fim de tarde.

Passou anos esperando por desculpas. Talvez fosse capaz de perdoar, se soubesse que aqueles rompantes de juventude foram amargados em, ao menos, uma noite de remorso. Dia desses entendeu que não vai acontecer. Passou pelo carrão novo estacionado. A bandeirola do Brasil, trepidando na haste da antena, ela já tinha avistado de longe, mas, foi chegando pertinho que decifrou, num adesivo, o código de honra dos homens de bem: “Chora que o choro é livre!” Sentiu uma náusea estranha, o pulmão rareante de ar novamente, uma raiva entalada subindo pelas entranhas. Apanhou do chão uma pedra bem pontiaguda, daquelas que podem fazer um baita estrago e saiu

escrevendo no ar “Não tiozinho, o choro não é livre!!! Quem chora não é dono da tv! Quem chora não tem mãos gigantescas derrubando o mundo! Quem chora não tem força para soltar os gritos comprimidos no peito! Quem chora é sempre a vítima dos sonhos cúpidos de vocês!” Libertou-se, ao menos daquela esperança.


Este texto é de responsabilidade do autor/da autora.

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