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Tarô

Não era a primeira vez que se enrolava em si mesma, se enclausurava e se escondia do mundo. Ultimamente tinha sido recorrente, viver o mundo real e enfrentar os jogos da vida estava cada vez mais difícil. Começou a lembrar das vezes que fez isso e porquê. Quando era pequena, se escondeu da mãe, depois de quebrar um prato com sopa quente, sujar todo o chão e provocar um grito agudo e furioso. Ficou com medo de apanhar. Escolheu o armário do quarto, que com uma prateleira quebrada, deixava espaço pro seu corpo franzino e trêmulo. Adormeceu. Quando acordou, foi saindo aos poucos e se inserindo no ambiente sem ser percebida, como um camaleão. Nunca soube o que teria acontecido se não tivesse se escondido. Preferia não pensar. O desconhecido lhe causava medo.

Depois, em vários momentos, escolheu como refúgio a escuridão e a poeira que se formava embaixo da cama da mãe. Teias de aranha e o chão de tábuas, que fazia um som estranho quando ela encostava o ouvido, lhe faziam companhia. Toda vez que ouvia os gritos, as batidas na parede, os objetos quebrados, a força da porta batendo no batente e o choro compulsivo da mãe. Queria sair, abraçá-la e dar a ela a chance de se esconder também, até que o pranto virasse soluços compassados e suspiros de resignação. Mas não tinha coragem. Seu corpo se paralisava e com os olhos cerrados tentava imaginar cenas bonitas: um parque verde, cheio de crianças brincando, correndo e gargalhando com prazer, segurando lindos balões de gás e se lambuzando com os tons pastéis do algodão doce; um lago azul com peixinhos coloridos que nadavam alegremente se esbarrando uns nos outros, pulando no alimento que ela jogava com destreza. Um pipoqueiro passando, com seu carrinho que era uma vitrine para a gula e o desejo. Às vezes isso adiantava, às vezes não. Os olhos, de tão cerrados, frequentemente doíam e quando abertos derramavam lágrimas, que ela não sabia se era de dor, de medo, de angústia ou de esperança. Só passava depois de um tempo e sua adaptação à normalidade do lar se dava aos poucos, de forma discreta, quase imperceptível.

Agora já não cabia mais nos seus redutos imaginários. Criou então uma carapaça, uma blindagem natural, que lhe trazia a falsa sensação de abrigo, de acolhimento, como um abraço apertado pra matar uma saudade. Como a impressão de segurança de deitar numa cama quente e limpa ouvindo o som da chuva leve no telhado e adormecer, tendo a certeza que pela manhã o sol estará brilhando e iluminando um dia bom. Sua fraqueza e impotência diante das incertezas que a vida lhe causava todos os dias eram maiores que seus asilos. Estava cansada, exausta.

Nos momentos de maior aflição tinha o cobertor, que usava pra cobrir o corpo e a cabeça e com ele ficava ali, em silêncio esperando tudo chegar ao fim. Seu casulo particular, pendurado em um ramo, numa árvore alta. Lembrava de uma carta de baralho, retirada certa vez, por uma cartomante de índole e talento duvidosos. Era um homem pendurado por uma perna apenas em uma corda e um galho, com as mãos para trás, impassível, o décimo segundo arcano do tarô de Marselha - O Enforcado, a mulher disse, e na mesma hora ela pensou que o fim seria breve, finalmente. Mas não. Era o tempo em suspenso, a espera infinita, o invólucro escuro e solitário de sempre.



Este texto é de responsabilidade do autor/da autora.

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